A Dama na Água (Lady in the Water, 2006, M. Night Shyamalan)

Por: João Marco

Vivemos em um mundo bombardeado por acontecimentos e situações cada vez mais horrendas e que fazem com que nossa negatividade seja alimentada. De assassinatos a atentados, vemos a raça humana se autodestruir constantemente e aqueles que não optam por esse caminho simplesmente acabam por perder a esperança de que dias melhores poderão chegar em algum momento. O universo na qual habitamos vai construindo o nosso niilismo e negatividade que carregamos para todos os lugares, em especial, quando sentamos em uma cadeira de cinema e, ao invés de acharmos uma forma de desconectar-se dessa realidade e imergir na fantasia mística proposta por aquela determinada obra, entramos em um nível cínico que impede com que venhamos a apreciar a beleza, já que julgamos tal visão utópica do realizador como "ridícula" ou "patética".

E, por isso que o diretor, M. Night Shyamalan, inseriu em A Dama na Água, um personagem específico que simbolize isso: o crítico Harry Farber (Bob Balaban).

Constantemente fechado em sua casa e preso em uma persona distante e pouco amigável ou convidativa, o crítico é uma sátira ao mesmo tempo que uma triste constatação, já que a pessoa que exala é o contrário do que deveria ser. Ao dizer, por exemplo, que acha "ridículo" um artifício como a chuva em um filme de romance, ele é confrontado pelo zelador Cleveland Heep (Paul Giamatti) com a possibilidade de tal elemento possuir uma importância na história, algo que Harry retruca negativamente. 

Então, de certo modo, Farber é um reflexo do espectador (e, infelizmente, do crítico) que entrou na sessão dessa obra para analisar ela através de uma ótica pragmática e sem se entregar a ela de modo puro e inocente. A Dama na Água é a reprodução audiovisual da beleza de uma fábula infantil que só pode ser apreciada com um olhar doce de uma criança e não por olhos niilistas de um adulto. E, curioso como Shyamalan reforça isso ao, em certo momento, colocar Cleveland agindo, literalmente, como um menino fascinado para que uma das personagens lhe conte o resto daquela lenda. 

No final das contas, é isso que Shyamalan quer que o espectador faça: se torne criança novamente para ter a capacidade de entrar na fábula que propõe, sem qualquer tipo de olhar realista, mas aceitando a beleza do misticismo que entrega. O indiano almeja que o espectador creia no encanto daquela fantasia, e a pureza de ser criança é o melhor método. A obra inicia através desse aspecto ao introduzir os alicerces de seu universo com uma objetividade admirável e que ainda fascina pela criatividade e pelo modo que se comunica com o mundo na qual vivemos. 

Ao sabermos que as criaturas da água quebraram seu vínculo com os humanos, Shyamalan formula uma alegoria ao fato de, ao amadurecemos, perdermos a inocência de uma fase pelo niilismo completo que vem com o crescimento e abandonamos o encantamento por tais histórias como a vista aqui. Então, a obra se liga tanto ao período social da época na qual foi feito como é efetivo e relevante como mensagem ainda hoje, já que a cada dia, nos distanciamos da possibilidade de uma união humana. Aqui, Shyamalan não só mostra como crê nessa força unificadora, como estabelece ela pela chave da fantasia. 

Aqui, é a fantasia e a crença no místico que carrega a força necessária para, aos poucos, unificar seus personagens naquele condomínio. Nesse ponto que entra a personagem Story (Bryce Dallas Howard) que, mesmo óbvia ao interpretar o simbolismo que o cerca, não deixa de perder o encanto: sua missão é simples, já que está determinada a fazer com que a humanidade lembre da força de uma união e como ela pode enfrentar situações difíceis. E, por isso que, toda vez na qual vislumbramos uma televisão em cena, ela transmite apenas informações negativas a respeito da situação social na qual o projeto se situa. 

Ainda vivendo sobre as nuvens nebulosas do trágico evento ocorrido no dia 11 de setembro de 2001, acompanhamos aqui um curioso registro da desesperança que é refletida tanto em Farber quanto em outra figura essencial para o andamento da narrativa: Mr. Leeds (Bill Irwin). Sempre visto acompanhando as notícias de modo alienado, Leeds é o reflexo do trauma causado no povo que vive sobre solo americano devido aos acontecimentos posteriores ao atentado. Ele é a representação de como perdemos a fé de um futuro utópico para humanidade e aceitamos o destino pessimista que nos resta (e, em certo momento, ele chega a questionar para Cleveland se merecemos realmente ser salvos).

Outro artifício que Shyamalan usa para reforçar essa ideia, essa mensagem utópica de esperança no extraordinário é como ele trivializa diversos aspectos dessa fábula: a começar pelo palco que acolhe ela ser um condomínio simples e ordinário como diversos e seus personagens heroicos dessa fantasia serem pessoas comuns. O curandeiro que é um "mero zelador", o intérprete que lê informações importantes em palavras cruzadas ou em caixas de cereal, o guardião que malha apenas uma parte de seu corpo, entre outros exemplares. O indiano faz desses aspectos místicos serem tão cotidianos para reafirmar que a nossa esperança de uma união utópica da humanidade está em nossas mãos e somente nós podemos usá-las do modo adequado para auxiliar nessa caminhada. 

Todos nós temos um propósito nessa jornada de unificação da raça humana, apenas não sabemos como usar, necessariamente. E, novamente, através da força da sétima arte, o diretor e roteirista reforça a fé na qual possui pela espécie e que ela é mais poderosa do que quaisquer niilismo que cegue seu olhar. Não a toa, ele se escala a um papel que, aparentemente soa autoindulgente, mas que acaba se revelando adequado ao vermos como aquele personagem representa o que ele mesmo sente (e, em certo momento, Vick acaba por mencionar que jamais irão levá-lo a sério, algo que soa como uma afirmação quase íntima do diretor expressa no diálogo daquela figura). 

Por isso que compreendo perfeitamente o ódio e desprezo do público e crítica ao projeto de Shyamalan: A Dama na Água não pede algo fácil, ele lhe convida a uma jornada que só será apreciada por aqueles que forem capazes de abolir o niilismo adulto ao entrar na narrativa e, tal como Cleveland, se tornarem crianças novamente para se encantar com a beleza dessa encantadora fábula sobre a fé na união humana e o utópico sonho de que, através da fantasia e do sobrenatural, encontremos uma forma de concretizar tal feito. E, mesmo que nossa realidade continue opressora e ausente de qualquer esperança, ao menos a arte é um escape de fuga da melancolia e negatividade que nos cerca. Ela é um refúgio, acolhe e protege, mesmo que durante duas horas de filme ou alguns dias de leitura ou minutos de uma bela canção. 

Acima de tudo, a arte é uma fantasia do mundo real. Mas, claro, se você estiver disposto a embarcar nela como uma criança: de forma inocente e pura.

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