Retrato de uma Jovem em Chamas e Persona: O espaço e a encenação


Por: João Marco

(Publicado originalmente em 2020)

Mais importante do que está no roteiro de uma obra cinematográfica é a maneira particular que seu diretor irá encenar e construir tal fato, conseguindo resultados opostos em situações que, em sua estrutura textual, seriam semelhantes a diversas outras que já testemunhamos em outras produções. 

Uma sequência que circunda um diálogo entre dois personagens pode ter diferentes modos de ser construída que acompanha o estilo, tom e proposta criada através de um domínio próprio da linguagem cinematográfica. Através de como o diretor (ou diretora) procura conceber e filmar tais instantes procura um aspecto que é próprio de seu filme ou da sua filmografia. Não é suficiente apenas transpassar o que está no roteiro para o audiovisual, seu diretor precisa usar as ferramentas da linguagem para reforçar algo maior na experiência individual do espectador. 

E, além disso, o diretor precisa estabelecer o ambiente na qual ele encenará o roteiro, usando da mise-en-scène para criar, então, a força da experiência audiovisual que propõe. Dito isso, eis que chegamos nos citados Persona (ou Quando Duas Mulheres Pecam, na tradução brasileira) de 1966 do sueco Ingmar Bergman e o recente Retrato de uma Jovem em Chamas, da diretora francesa Céline Sciamma, lançado em 2019: ambos lidam com uma estrutura e atmosfera semelhantes (duas mulheres e a relação entre elas dentro de um espaço em um curto período de tempo), mas o que liga um ao outro é o modo que Bergman e Sciamma reforçam a importância da encenação e transformam o espaço das ilhas em ambientes quase místicos, palcos de uma experiência que, de certo modo, irá mudar completamente a vida daquelas mulheres. 

Dentro desse aspecto, cada um dos realizadores escolhem um modo pessoal de construir isso através da maneira como utilizam a linguagem cinematográfica: Sciamma, por exemplo, procura uma amplitude na captura de planos em espaços externos, abertos, reforçando a dinâmica das personagens enquanto intensifica a presença da ilha e suas belas paisagens nessa equação. Até mesmo em como a diretora procura retratar a interação de Héloïse (Adèle Haenel) com elementos naturais (o fogo em seu vestido e seu ato de mergulhar nas águas da praia) é um forte indício de como aquele ambiente exerce uma espécie de mística na atração crescente de Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse, mesmo que ela seja sutil. 

(Há também uma certa essência mitificadora na maneira como tais enquadramentos são construídos e nas estruturas rudimentares da ilha que são vistas, detalhes que incitam o mito de Orfeu e Euridice, que suas protagonistas debatem em um determinado instante da projeção.) 

Já no caso de Bergman, ele adota a mesma estratégia em alguns momentos, mas procura lidar com essa força mística através de aspectos mais sutis: sua câmera, por exemplo, acompanha as inúmeras falas de Alma (Bibi Andersson) para Elizabeth Vogler (Liv Ullmann) com close-ups dramáticos que procuram buscar as expressões de ambas durante as interações. Pelo fato de Elizabeth mal pronunciar algo durante os 85 minutos de projeção, isso acaba por ser um recurso importante, pois incita o que ela pode estar sentindo sobre aquilo que lhe é contado ou o que ocorre durante o curto período que passa ao lado de Alma. 

Outro aspecto que Bergman preserva aqui é a forma que a atmosfera da ilha atua na dinâmica das protagonistas, pois Alma e Elizabeth acabam por serem impactadas em suas interações, proporcionando uma experiência muito mais íntima, profunda e marcante na qual o realizador reforça através do instante mais lembrado, onde acompanhamos Vogler entrar no quarto de Alma, na qual o misticismo é transmitido através de uma luz usada de maneira enigmática e uma presença neblinosa que reforça algo quase fantasmagórico, lúdico e, essencialmente, místico. 

Também é curioso perceber que, além de compor essa idealização da ilha como uma força mística de experiências marcantes (e, no caso do filme de Sciamma, emocionalmente profundas), tanto Bergman como Sciamma transmitem eficientemente a relação de suas protagonistas através da minuciosidade que aplica as suas interações, em especial, aos olhares que trocam: desde a atenção completa de Vogler ao ouvir os pensamentos internos de Alma, até a paixão incontrolável de Marianne e Héloïse que faz com que desviem menos os seus olhares, tornando-os cruciais na formação de um amor através das sensações que transmitem. E tanto o sueco quanto a francesa compreendem o valor disso na encenação desses momentos. 

Usando do mesmo artifício de linguagem empregado por Bergman, Sciamma reforça os momentos mais íntimos de Marianne e Héloïse através de close-ups dramáticos e estáticos que permitem o espectador a compreender toda a dimensão dos gestos diminutos, desde um toque em sua própria mão até uma respiração mais ofegante a medida que a atração que nutrem se torna ainda mais incapaz de ser omitida - o segmento onde ambas discutem esses padrões gestuais que possuem é o exemplar perfeito desse aspecto de modo claro ao público (cena essa que, inclusive, se assemelha a outro momento de Persona). 

Interessante ver como, uma das sequências principais de ambas as obras são encenadas de maneira semelhante: em Retrato, Marianne entra no quarto na qual se encontra Héloïse e apoia sua cabeça sobre seu ombro, e, logo em seguida, Sciamma retrata esse instante através de um close-up que enquadra as duas dentro do mesmo plano, na qual acompanhamos uma série de gestos e toques que incitam desejo e paixão, fotografado dentro de uma composição amarelada, quente, vinda da fogueira ao lado das personagens e que transmitem o conforto que ambas sentem ao estarem juntas - basta ver que, ao Héloïse ouvir novamente a música tocada por Marianne em uma ópera, a composição estilística segue o mesmo padrão. 

Já no Persona, ocorre algo parecido quando Elizabeth entra no quarto de Alma enquanto a mesma repousa. Alma acorda e, ao ver Vogler em pé, encosta na moça e apoia sua cabeça em seu ombro e começam a executarem os mesmos gestos e toques, porém com um significado menos direto e mais diversificado, enquanto a cena no filme de Sciamma - que, nitidamente, se inspirou nesse momento icônico da filmografia do sueco para criar o segmento - , tal instante soa como um elo definitivo do amor entre Marianne e Héloïse, fundamentando o sentimento de paixão incontrolável em uma cena íntima e poderosa, construída através dos detalhes. 

Em síntese, tanto Retrato de uma Jovem em Chamas quanto Persona, a sua maneira, reforçam a ideia de uma força mística do espaço que intensifica a dinâmica dramática e emocional de suas protagonistas. Uma ideia que, Sciamma e Bergman transmitem no modo que ambos os realizadores encenam suas personagens no ambiente. Claro que, é inegável como Sciamma teve uma influência forte da produção de Ingmar, desde sua atmosfera narrativa - excetuando o aspecto experimental e não-linear do projeto - até a maneira como compõe o misticismo de um ambiente e as possibilidades que existe nele. Como uma mera ilha pode ser o palco de uma experiência quase transcendental para Elizabeth e Alma ou de um amor curto e poderoso para Héloïse e Marianne? 

Através da força do cinema.

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