Matrix (The Matrix, 1999, Lilly e Lana Wachowski)

Por João Marco

(Escrito originalmente em outubro de 2020)

É até meio complicado definir a escala do impacto cultural de Matrix, especialmente após 20 anos do seu lançamento original, no ano de 1999, um ano de transição, onde um século se encerrava e dava espaço a outro que seria muito mais evolutivo em aspectos tecnológicos, mesmo que tão socialmente problemático como aqueles que o antecederam. E se antes o temor por essa constante ampliação tecnológica do mundo era algo pertencente apenas as ficções distópicas à lá Blade Runner, a obra das irmãs Wachowski acabou se tornando uma produção essencial para se compreender como esse pavor de um possível regime onde os humanos eram os escravos das máquinas se tornou relativamente real, mesmo sem seguir os padrões explícitos de uma ditadura cyberpunk como a mostrada no filme.

Hoje em dia se discute muito sobre a absorção humana dentro desse espaço virtual, esse mundo de farsas, onde a verdade pode ser distorcida, onde o real e falso entram em constante choque. Um mundo prazeroso que parece distanciar o usuário da sua realidade. Uma espécie de simulacro que possibilita um acolhimento, mas que impede um confronto com o real.

Poderia ser uma definição da Matrix do título, mas acaba se revelando como a relação da sociedade contemporânea com os apelos digitais, seja o celular e aquela vida de falsa beleza que as pessoas expõem em fotos no Instagram, seja o Twitter onde muitos declaram ódio por trás de uma máscara, seja em jogos de realidade virtual que, hoje ainda mais evoluídas, criam mundos irreais, simulações que te imergem naquele local, mas que evidenciam totalmente sua inexistência. Enfim, no século XXI, parece que vivemos cada vez mais presos a esse mundo virtual.

Nesse sentido, a obra das Wachowski é tão influente na geração atual do que era em seu ano de lançamento. Melhor: é uma produção que consegue funcionar em duas gerações, tanto para a que entraria em um novo século quanto para pessoas nascidas nessa era movida aos estímulos tecnológicos que aprisionam, mas ao mesmo tempo, libertam. Toda a concepção de mundo de Matrix é realmente interessante, mas a maioria das análises feitas sobre a obra se limita a discutir as referências culturais e os elementos interpretativos e simbólicos da imagem e não necessariamente como ela possibilita que a temática de liberdade em um sistema totalitário seja exposta.

As Wachowski criam um mundo "digital" de possibilidades que somente aqueles na qual compreendem além dela serão capazes de explorar as capacidades existentes naquele mundo. Um sistema de simulação que esconde a verdade e mantém aqueles que se encontram imersos em uma falsa realidade. Mas, aqueles que conseguem enxergar fora desse realismo farsesco, são capazes de grandes feitos. Matrix é controle, e quem se liberta dela, pode controlar o seu corpo nesse mundo. O ato de liberdade aqui está nas possibilidades exploradas pelos personagens dentro dessa simulação. Aqueles que se libertam, que acordam, acabam percebendo que tal mundo não possui regras. 

Não possui lógicas de física ou gravidade, essas leis do mundo real não se aplicam a esse mundo. Um bom exemplo de cena que confirma isso é o instante na qual vemos Neo (Keanu Reeves) conversando com uma criança peculiar na sala de espera do Oráculo (Gloria Foster), onde o menino demonstra ao protagonista como entortar uma colher, mas não tentando, de fato, e sim reconhecendo que aquilo sequer existe, é meramente uma reprodução artificial de um objeto real e quebrando assim qualquer regra da física ao dobrar aquele objeto através da mente, da compreensão de que aquilo não é real.

É uma cena que evidencia muito sobre o que é a obra das Wachowski: a compreensão do que é real e do que é uma mera simulação em um mundo de constante expansão tecnológica. Aceitar a verdade de que aquele universo não passa de uma mera projeção artificial. E, ao compreender isso, explorar as diferentes capacidades desse simulacro.

A dinâmica da ação e a relação dela com os espaços evidencia bem isso: o mundo do simulacro, da Matrix, possui um filtro esverdeado muito evidente e puramente artificial, mas que é uma escolha de fotografia inteligente ao reforçar essa dinâmica falsa de uma mera simulação de computador. Já a ação lida com coreografias que são extremamente bem ensaiadas, concebidas de modo detalhista e feitas de maneira realista (dublês e atores), mas ao mesmo tempo lida com um artificialismo gráfico muito evidente, tanto no que envolve os espaços (a sequência da explosão no prédio dos agentes, a destruição do helicóptero em um edifício) e no que diz respeito a recriação digital dos atores em cena, os famosos "bonecos digitais" que executam através dos efeitos aquilo que os atores reais e até dublês são incapazes de realizar.

Dentro dessa abordagem das Wachowski, os corpos dos personagens na ação possuem uma maleabilidade que possibilita momentos como Neo se desviando de balas de modo rápido, Trinity (Carrie-Anne Moss) dar um salto no ar e atravessar uma janela de modo irrealista e até a sequência do treinamento de Neo com Morpheus (Laurence Fishburne), tanto a que eles treinam kung-fu quanto o programa de saltos.

Dito isso, é interessante olhar Matrix pela forma como as Wachowski concebem esse universo de ficção cyberpunk: elas unificam esse mundo que se move através de filosofia, existencialismo e cinema oriental (Wuxia) com artifícios de animes como Akira e Ghost in the Shell para conceber essa viagem alucinante e formalista onde as diretoras questionam o aprisionamento digital da humanidade e o ato de se libertar através da dinâmica que estabelecem entre corpo e espaço. O maior ato de liberdade dos personagens aqui, além dos já conhecidos, é quebrar as regras de um universo de simulação. A rebelião aqui está implícita na maleabilidade dos corpos.

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