Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte 1 (Mission: Impossible - Dead Reckoning Part One, 2023, Christopher McQuarrie) | Crítica

 


Por: João Marco

(Publicado originalmente no dia 16 de Julho de 2023)

No ano de 2009, enquanto a franquia Missão: Impossível caminhava a passos curtos e com apenas três capítulos até aquele ponto, um cenário começava a se estabelecer dentro do circuito Hollywooodiano dos blockbusters, impulsionado pela aquisição milionária da Marvel Comics efetuada pela Walt Disney Company aliada ao lançamento de Homem de Ferro no ano anterior e o impacto cultural ocasionado por The Dark Knight da Warner naquele mesmo período. Através do sucesso imediato da investida, criou-se o mercado dos super-heróis no cinema estadunidense, uma jogada que rendeu muito aos estúdios Disney e serviu como modelo para produções seguintes, especialmente no que diz respeito a estratégia de universo compartilhado onde cada filme operava como um capítulo de uma narrativa maior.

E, ainda que seja um projeto artisticamente problemático (é possível contar nos dedos os poucos bons trabalhos da Marvel Studios nesses 15 anos de trajetória), o retorno bilionário de suas apostas era aquilo que verdadeiramente importava nos cofres da empresa. Todavia, para o restante dos blockbusters, o preço foi alto: durante muito tempo, a única coisa que parecia motivar o entusiasmo- e o investimento- do público casual era esse fenômeno. Ou, em outras palavras, só a Marvel, visto que a Warner/DC ainda se empenhava para atingir o mesmo sucesso. A hegemonia dessa “era” se revelou prejudicial ao obliterar qualquer outra produção que não abrisse com a vinheta da produtora que, agora, era capitaneada pelo monopólio da Disney.

Nesse sentido de domínio cultural, quem sofria eram os projetos verdadeiramente amados pelos seus cineastas e equipe, feitos com paixão, que se empenhavam e sequer saiam prejudicados nas bilheterias, mas pareciam cair em um ostracismo e no esquecimento por grande parte do público. Entre essas produções, se encontrava a franquia Missão: Impossível e sua qualidade - quase - consistente e que parecia evoluir a cada nova continuação. Por isso mesmo que é surpreendente chegar em 2023 e perceber que as produções mais previamente aguardadas sequer atingem o nicho Marvel/DC; Filmes como Barbie, o quarto capítulo de John Wick e, claro, a sétima e gloriosa sequência da série do agente Ethan Hunt (Tom Cruise).

Aliás, se existe algo que favoreceu ainda mais a franquia, isso foi o tempo: próxima de completar 30 anos de caminhada, a produção inspirada na série de televisão criada por Bruce Geller torna-se cada vez mais engenhosa em brincar com as possibilidades de seu arsenal conceitual e com as possibilidades oferecidas pelo seu universo, orquestrado nessa gigantesca cortina de farsas recorrentes, onde tudo se desmancha a todo momento, na qual cada imagem se desconstrói em ritmo compulsivo. E se isso já era algo firme nos alicerces desde o primeiro capítulo em 1996, comandado pelo mestre das ilusões Brian De Palma, aqui, sobre a atual tutela de Christopher McQuarrie (diretor de Jack Reacher, o começo de sua parceria com o astro Tom Cruise), isso é a raiz dos dilemas enfrentados pelos agentes da IMF.

Enquanto os capítulos anteriores exploravam a ideia cênica da farsa, seja de modo ilusório (Nação Secreta) ou essencialmente metalinguístico (Fallout), aqui em Acerto de Contas, ela é o antagonista e o principal percalço dos protagonistas. Ao trazer uma I.A. como nêmeses, a franquia desestabiliza completamente os fundamentos entre realidade e encenação, já que, uma vez estabelecida em qualquer aparelho tecnológico, Ethan e sua equipe jamais conseguem distinguir se tais informações são verídicas ou meras distrações do objetivo principal, o que exemplifica o instante na qual Benji (Simon Pegg) corre atrás de uma maleta que, supostamente, contém uma bomba para, minutos depois, se provar como uma enorme abstração que retira o foco da missão principal.

A inteligência artificial, chamada de “A Entidade”, se manifesta em todo lugar na qual os personagens se deslocam, modifica informações, apaga rastros e altera até mesmo a realidade da qual os personagens tem uma aparente consciência e até confiança, como no instante na qual Benji guia Ethan por uma série de vielas em Veneza. Em resumo, a I.A presente nesse sétimo filme, dividido em duas partes, é a manifestação da farsa que constrói circunstâncias diversas para enganar os protagonistas e até mesmo ser capaz de antecipar eventos dramáticos que serão pontos fundamentais da narrativa. Se antes o tal “jogo de máscaras” era a estratégia de Hunt, agora o mesmo precisa combater o seu próprio artifício, uma perspectiva tão metalinguística quanto a brincadeira de identidades entre o protagonista e John Lark, no capítulo anterior.

E, nessa caçada alucinante, quem se diverte - novamente - é Christopher McQuarrie ao desfrutar dos artifícios para estabelecer uma caminhada ainda mais urgente que as missões anteriores de Hunt: a forma como o cineasta usa a montagem de Eddie Hamilton realça isso em sua abertura, ao sobrepor sem escrúpulos uma imagem atrás da outra em uma fluidez que faz de cada corte uma transição tão natural ao ponto de parecerem ocorrer no mesmo espaço ou ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo, a decupagem ganha com os inúmeros planos-holandeses que desestabilizam a noção cênica do momento, tornando uma simples conversa em uma situação emergencial e decisiva ou até mesmo um segmento de ação que clama por celeridade em algo impulsivo - e aproveitando que mencionei isso, vale encontrar destaque para o confronto de Ethan e Paris (Pom Klementieff) em um beco de Veneza, que se destaca pelo desempenho físico e pela interação com o espaço comprimido, além de virtuoso ao tornar cada golpe ainda mais agressivo pela ornamentação da câmera.

O que McQuarrie faz aqui é resgatar um cinema de encanto primordial. Cruise é uma estrela não apenas pelo carisma inesgotável, mas por se desafiar e por tornar cada proeza um verdadeiro evento, seja pular de um penhasco com uma motocicleta, lutar em cima de um trem em movimento ou simplesmente correr de um lado para o outro. É nesse sentido que a franquia Missão: Impossível encontra o seu deslumbre, afinal, em uma era de estímulos tão gritantes e que parecem cada vez mais berrar pela quantidade e pela sobrecarga, ver algo tão “simples” em sua essência torna-se grandioso. A comparação com Keaton e Chaplin não é exagerada de modo algum, pois as acrobacias mirabolantes que esses artistas realizavam nos primórdios do cinema são as mesmas que Cruise se entrega a realizar, em níveis ainda maiores e perigosos.

O encanto vem de contemplar algo tão bem realizado, feito com tamanha paixão que transborda em cada plano. Nenhum quadro lotado de efeitos imediatos feitos na pós-produção e que acredita ser “autoral” se equipara a conversa de Ethan, Gabriel (Esai Morales) e Alanna (Vanessa Kirby) durante a festa em Veneza, onde a câmera, aliada a montagem e os cortes, mesclada com o foco do plano que alterna cautelosamente entre os pontos de vista da situação, constrói uma sequência tão hipnótica quanto as mais intensas peripécias de ação da narrativa. Como um momento tão “simples” e encenado de maneira relativamente modesta ser igualmente enervante ao nível do clímax do trem? A verdade é que Acerto de Contas Parte 1, assim como os capítulos anteriores desses 27 anos de franquia (com exceção do genérico terceiro filme dirigido por J.J. Abrams), entendem que o cinema-espetáculo está nos maiores e menores detalhes de suas imagens, nas sutilezas encantadoras como a barra de ferro que a personagem da Klementieff usa em um confronto ou as algemas que unem Hunt e Grace (Hayley Atwell) durante uma perseguição em Roma - inclusive, o casting feminino sequestra o protagonismo de Cruise durante o filme todo, sejam as já bem estabelecidas Ilsa de Rebecca Ferguson e Alanna de Vanessa Kirby até o silêncio sádico de Pom Klementieff - que tem muito mais talento do que as mediocridades da Marvel permitem a atriz explorar - e a sagacidade cômica de Hayley Atwell.

Dito isso, volto a abertura do texto para reafirmar que, a linha na qual se diferencia algo como Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte 1 do monopólio Disney e suas intermináveis aquisições é bem nítido: enquanto a preocupação do último é estritamente comercial, lotando os estímulos do público de easter eggs e sacadinhas que serviram para lotar as páginas de cultura nerd com memes e frases, canais de Youtube com vídeos explicados e análises vazias com quase 1 hora de duração, além das lojas temáticas com os produtos do marketing, deixando qualquer comprometimento com o amor dos artistas envolvidos pelo que fazem em último na lista, o maior cuidado que o primeiro tem é com o que está em cena, com cada ato filmado e com o prazer de criar tudo aquilo que será admirado em uma sessão de cinema. Claro, o retorno financeiro importa, afinal, é um investimento; mas, acima disso, vem a paixão de inúmeros artistas, de um cineasta e de um ator que, como assumem abertamente, amam o cinema.

E se a situação de cinco anos atrás era minimamente frustrante, ver uma sucesso prematuro de algo que tampouco remete ao universo de super-heróis ou que sequer tem o dedo da Disney é, no mínimo, gratificante.

Ou, melhor dizendo, é lindo mesmo.

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