Death Note (idem, 2017, Adam Wingard)


Por: João Marco

Trabalhar com um material que já carrega um certo status de popularidade e veneração por um nicho específico acaba se tornando um desafio para o artista, já que o próprio se encontra em uma situação delicada de encontrar um meio termo entre apresentar um universo a espectadores novos e saciar as expectativas daquele grupo que já possui um contato (emocional, na maioria das vezes) com aquela obra. A questão é que fidelidade não é nem um pouco o foco central ou o ponto mais importante da releitura cinematográfica. Claro que, se aquele filme conseguir traduzir todos os conflitos dramáticos e pontos narrativos importantes de um livro ou um jogo, é algo positivo, mas se ele não tiver essa intenção, é ainda melhor. Esse discurso todo é apenas para dizer que a última coisa que o diretor Adam Wingard (O Hóspede, Você é o Próximo) almeja encontrar na sua leitura ocidental do bem sucedido e cultuado mangá/anime Death Note é a reprodução autêntica dos fatos apresentados em sua versão original.

Wingard é um realizador que acumula um arsenal ilimitado de referências e inspirações que utiliza em suas obras dentro de uma iconografia reverencial, mas que jamais se limita ao saudosismo gratuito. Cada elemento que remonta o trabalho de outro diretor existe com um propósito claro e com um efeito narrativo edificante. E aqui, diferente do seu tom Carpenteniano com toques de Dario Argento em The Guest, o autor procura uma espécie de mistura desengonçada entre o maneirismo de Brian De Palma com a dinâmica cênica acelerada de Fight Club do David Fincher em uma obra que mistura todos os seus artifícios, seja a música como o histrionismo e a autoconsciência de um Wes Craven em uma abordagem inconsequente na qual reflete, no final das contas, o imaginário de toda uma geração. 

Basta observar o começo: através de um slow-motion contemplativo, Wingard estabelece uma essência quase mística no cotidiano do ensino médio norte-americano em um olhar de admiração, mas que logo se materializa em deboche ao, logo após apresentar seu personagem central e fazer com que pegue o caderno que caí ao seu lado, Light (Nat Wolff) tenta ajudar um rapaz que está sofrendo bullying e leva um soco. Seria a forma simplificada de observar o momento, mas ao notar os detalhes, vemos a grande piada que é a persona de Light Turner e como o diretor compreender perfeitamente isso: em primeiro lugar, o protagonista passa o segmento inteiro sem tomar uma atitude e só escolhe fazer algo justamente quando o crush dele, Mia (Margaret Qualley), acaba sendo empurrada pelos valentões. Ao invés de ser visto como um ato corajoso e heróico, Light é ridicularizado até pela menina, que diz a ele que sabe se defender. Após isso, ele tenta chantagear o bully em uma performance perfeitamente concebida por Wolff nos trejeitos que usa para criar um sujeito patético em sua autoimportância. Resultado: ao invés do desfecho Hollywoodiano do jovem bondoso e heroico que, mesmo fraco, deu a volta por cima com esperteza e sagacidade, Light é socado no rosto, encontrado por uma professora que dedura ao diretor sobre ele estar fazendo as atividades de outros alunos e o manda para detenção. 

Ao invés do caminho mais simples, Wingard quer escrotizar e rir de tudo em uma abordagem que reconhece seus exageros e os usa para comentar sobre uma geração em voga que, curiosamente, foi a mesma que rejeitou a obra e condenou a adaptação sem sequer esperar para ver o que seu diretor teria a entregar. Tudo circunda um olhar peculiar sobre os trejeitos e maneirismos de um millennial que acredita ser incrível sem sequer reconhecer a própria mediocridade. Esse é Light Turner. Ou melhor, esse pode ser também Light Yagami, personagem da obra original e seu jeito racional que pode ser observado com uma certa tendência contemporânea da adolescência em crescer antes do momento exato. Por isso que Light, Mia e até mesmo o detetive L são personas tão curiosas nessa versão, já que ambos representam uma geração que acredita ser madura o suficiente sem notar que ainda são todos infantis: Light e sua rebeldia de jovem transgressor, Mia e sua aura de gótica sociopata e as excentricidades de L, tudo que circunda a construção dramática desses personagens é pensada para mostrar como, em sua tentativa de serem “cool ” ou descolados são três imbecis que, infelizmente, recebem o poder em suas mãos.

Se com grandes poderes vem grandes responsabilidades, os três pilares de Death Note, no termo mais chulo possível, cagam e andam para tal lema: Light se perde em sua autoimportância heroica e em sua crença de que está honrando com suas responsabilidades; Mia assume sua psicopatia e começa a matar de modo frio e sem critérios e L, na reta final de tudo, começa a perder o controle e a razão em uma crise histriônica digna do cinema Craveniano (vide a abertura de My Soul to Take). E dentro desse ponto de partida, Wingard começa a fazer seu formalismo referencial entrar em colapso ao usar tudo: vai dos sintetizadores graves e evidentes da trilha pra soundtrack anos 80, de Australian Crawl a Air Supply até música eletrônica e pop anos 2010. A dinâmica de encenação encarna uma mistura desengonçada - e brilhante - de Brian de Palma com John Carpenter e toques de Dario Argento no uso das cores fortes, da hiperestilização dramática dos planos, do slow-motion, da caracterização exagerada tipicamente Depalmiana, passando isso pelo pop contemporâneo e unindo com um cinema pós-Pânico do Wes Craven condensado ao gore espalhafatoso de Final Destination. Cria-se uma insanidade em todas essas escolhas de encenação que reitera a inconsequência do comportamento dos personagens.

A unidade de Wingard acaba resgatando todo um imaginário oitentista/noventista de um cinema insano, aí que entra a comparação com Clube da Luta do Fincher que unia caoticamente estilos e ideias formais, mas se naquele faltava um foco mais coeso, Death Note tem isso de sobra ao justificar suas insanidades dentro desse olhar geracional de adolescentes que rejeitam as responsabilidades não por um ideal, mas por se sentirem irados em seus mundos fechados e frágeis. Tanto é que, quando eles colapsam, o resultado é um ato-final acelerado, que pula propositadamente etapas e corta caminhos para chegar no final e isso não levar a lugar algum. A releitura de Wingard é uma paródia de uma fase onde a anarquia para seus jovens é uma diversão vazia que eles usam sem escrúpulos, resultando em várias mortes, incluindo até de pessoas que “amavam”. No fim, só se importam consigo mesmos e com seus próprios méritos, com as vantagens que podem tirar da situação (Light mostrar o caderno pra Mia um segundo depois de dizer que não podia reflete exatamente isso). 

No encerramento do filme, Ryuk (Willem Dafoe) comenta que os humanos são tão interessantes” para Light em um comentário que complementa a autoparódia de Death Note, onde Ryuk poderia facilmente ser a materialização de Wingard naquele mundo, olhando de fora e sem interferir na loucura que é ser humano, especialmente quando se é adolescente. E inconsequente. No século XXI.

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