Miami Vice (idem, 2006, Michael Mann)


Por: João Marco

Publicado originalmente no portal do Vamos Falar de Cinema

Em Fogo Contra Fogo de 1995, também dirigido por Michael Mann, o assaltante Neil McCauley (Robert De Niro) e o policial Vincent Hanna (Al Pacino) viviam, alegoricamente, lados opostos de uma mesma corda: ambos estavam imersos em seus universos urbanos e seus “trabalhos”, a diferença residia no fato de que Neil procurava uma forma de escapar daquele ambiente que o consumia de maneira continua enquanto Vincent estava assumidamente imerso naquela urbanização de Los Angeles e jamais fazia questão de tentar se desvincular dela. 

Era a história de homens consumidos pelo espaço e que, no final das contas, acabam por retornar a ele, um para a distância completa de um relacionamento saudável com sua esposa e “filha” e outro para o afastamento definitivo de uma esperança em encontrar liberdade desse ambiente das ruas de L.A. Curioso que, no final das contas, essa é a base temática da direção de Mann em Miami Vice ao criar uma relação sutil entre Neil e Sonny (Colin Farrell), sujeitos consumidos pelo mundo que os engole e que encontram a esperança de liberdade. 

Aqui, em Miami Vice, isso acaba por ficar mais nítido na maneira como Mann estabelece uma relação entre seus personagens e o espaço na qual os cercam: constantemente, o diretor decupa as conversas entre Sonny e seu parceiro, Rico (Jamie Foxx) em planos de fundo que enfocam a imensidão urbana por trás da dupla, reforçando o quanto estão consumidos dentro dessa realidade urbana que pouco possibilita os policiais encontrarem uma fuga legítima dessa realidade. 

O espaço aqui para Sonny, é uma opressão, faz com que se sinta espremido, fechado e confinado dentro desse mundo de constantes evoluções digitais que aparentam desgastar seu personagem. Mann trabalha esse conflito íntimo do personagem através dessa dinâmica entre a forma como registra a relação de Sonny com esses espaços, sejam eles internos (a abertura na boate com um confinamento de corpos em um ambiente claustrofóbico) ou os externos, como os citados planos na qual vemos a cidade de Miami e suas luzes noturnas que conferem vida e energia ao local.

Mann também usa de sua fotografia digital para além de uma preocupação estilística fetichista, mas usando ela para reafirmar o aprisionamento de seus personagens e construir uma atmosfera caótica com relação a captura das imagens: os deslocamentos na qual a digitalização enfoca cria “borrões” que soam adequados para conceber esse registro da urbanização imediatista, de estímulos objetivos e como essas sensações diretas acabam por causar um desgaste contínuo e crescente em Sonny. 

Toda essa construção do espaço em constante evolução tecnológica está também enraizada nos artifícios narrativos mais triviais como o constante uso dos celulares, computadores, fones, radares e outros gadgets como auxílio, tal como exercendo um claro peso destrutivo em momentos como a sequência do trailer ou a revelação da atração de Sonny e Isabella (Gong Li) para o chefe do tráfico, feita através de um vídeo em um notebook – e, curioso ver que, no momento específico que procura fundamentar a relação entre o casal, essas tecnologias pouco aparecem. 

Por falar nessa dinâmica, ela é o combustível central para a crença de Sonny em uma esperança de liberdade desse ambiente urbano: assim que conhece a personagem, Mann procura focar aos poucos em uma vertiginosa troca de olhares que perdura até um segmento fatídico onde o diretor procura focar completamente nessa relação, deixando de lado o andamento da premissa básica. Se existe um símbolo que represente o laço entre Sonny e Isabella, esse é o mar, que está registrado muito antes dele sequer conhecê-la, na qual o vemos admirando o oceano que leva ao horizonte através de uma janela, confirmando esse seu desejo em escapar dessa sua realidade. 

E, durante um dos encontros de Sonny e Rico com Isabella, vemos a personagem através de uma janela que dá diretamente em um oceano levando ao horizonte. Agora, a necessidade do personagem em encontrar sua liberdade está materializada na moça, o que torna a dinâmica dramática do casal mais do que apenas bela, visto aqui como uma fuga de ambos em prol de uma liberdade que talvez não sejam capazes de alcançar ao verem que aquele romance proibido jamais resultará em algo bem alicerçado, criando uma aura pessimista que é emocionalmente forte, especialmente se o espectador foi capaz de estabelecer um vínculo com tais figuras.

Sonny idealiza em Isabella a sua esperança por uma vida comum, a fuga de sua realidade urbana desgastante, mas tudo aquilo é apenas um mero sonho utópico que faz com que suas esperanças morram sempre que crescem um pouco. Aos poucos, se encontra uma forte relação entre Sonny e Neil do Fogo Contra Fogo, que via em sua relação forte com Eady (Amy Brenneman) uma fuga da criminalidade na qual estava envolvido e desse espaço urbano na qual estava imerso. 

E curioso ver que, no final das contas, todo o conflito dramático enfrentado por McCauley no encerramento de Heat sobre se deveria ou não retornar e “finalizar o serviço” em definitivo acaba por se replicar aqui em Miami Vice quando, ao final da projeção, Sonny precisa decidir entre a liberdade da qual está mais perto do que jamais esteve e o retorno a sua realidade urbana na qual parece ser incapaz de se desvincular. E todo esse conflito dramático é fortalecido pela condução de Mann que reforça uma fagulha de esperança, mesmo que fique cada vez mais nítido qual será o desfecho. 

E se o desejo de Sonny era fugir para o horizonte com Isabella, o desfecho de Miami Vice não poderia ser mais trágico nesse sentido, já que o vemos retornando para sua vida e deixando ser continuamente consumido pelo espaço a sua volta enquanto vemos a sua amada em um barco seguindo o destino que foi incapaz de realizar, mas que sacrificou para garantir a segurança de quem ama. Se a ação do Neil foi pela dificuldade que tinha em abandonar seu “trabalho” criminal, aqui, Sonny age puramente pelo amor que sente e pela precaução ao vislumbrar um destino terrível para Isabella. 

Dessa forma, não é absurdo dizer que o filme de Mann é menos um “drama policial” e mais uma “história de amor impossível” em sua essência.

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