M. Night Shyamalan e a crença na fantasia como força restauradora
Por: João Marco
Aviso: Esse artigo contém Spoilers!
A política dos autores foi criada por críticos e cineastas jovens da revista Cahiers du Cinéma que buscava reconhecer a importância do "diretor-autor" dentro da expressão artística cinematográfica, autores que eram capazes de expressar elementos formais em suas obras comerciais e que eram característicos de suas produções. Tais ideias são permeadas até os dias atuais, porém, em terrenos diferentes: o autorismo vulgar tem como intenção base observar traços de diretores desconsiderados ou desvalorizados por público e crítica e encontrar as peculiaridades que os tornam tão marcantes e, por consequência, autores ainda que dentro de apelos industriais. Cineastas como Michael Mann, John Hymas, Paul W. S. Anderson, Os irmãos Farelly, Tony Scott, Paul Verhoeven e muitos outros. E dentro de tal nicho, existe um nome que ganha um destaque relativamente grande (mesmo que não seja o centro do vulgarismo). Seu nome é M. Night Shyamalan.
O diretor indiano naturalizado como americano possui uma carreira muito curiosa em sua aceitação dentro do meio cinematográfico: começando de maneira positiva, Shyamalan surpreendeu a todos ao entregar O Sexto Sentido, obra que fascinou espectadores e críticos com sua precisão narrativa que levou a compararem o iniciante a Alfred Hitchcock e não somente por fazer participações dentro de seus filmes. Contudo, essa paixão inicial para alguns se materializou em uma crescente decepção, já que o diretor escolheu caminhos audaciosos e comercialmente arriscados em sua filmografia, o que levou sua credibilidade a ser destruída até que fosse novamente restaurada quando, em 2015, voltou a ser aclamado com A Visita e retornou a boca do público com o hit Fragmentado , de 2016. Contudo, a questão que fica é: qual o motivo de tal rejeição generalizada?
Como disse anteriormente, Shyamalan acabou por escolher trilhos que, aos olhos de um público cada vez mais exigente, foram arriscados o suficiente para que o indiano fosse ridicularizado e desvalorizado com o tempo. Todavia, são esses tais “caminhos arriscados” que fizeram sua filmografia ser reavaliada e reconsiderada por uma parte do nicho cinéfilo que passou a reconhecer os esforços de Manoj e tentar desmitificar a imagem negativa criada pelos seus ditos “fracassos”, observando-os através do que Shyamalan tinha a oferecer como um autor cinematográfico. E aos poucos, o que muitos chamavam - e ainda chamam - de autoindulgente, brega ou patético começou a ser analisado e dissecado com tamanha atenção que, no cerne, encontraram um cineasta que acredita na fantasia do cinema como uma força mística restauradora.
Isso pelo simples fato de que Shyamalan renega uma pose fantástica que flerte com o realista, assumindo o quão “ridículo” é o seu tratamento com a fantasia, mas que isso só revela a pureza, inocência e, claro, a beleza que reside em cada uma delas. O indiano sabe evidenciar de modo único e particular como a fantasia é capaz de restaurar, de livrar seus personagens de traumas, de salvar e reerguer, de modificar desde que seus personagens estejam dispostos a acreditar.
Resumindo, o cinema de Shyamalan é sobre a crença restauradora no poder da fantasia e como ela é capaz de modificar dramaticamente seus personagens. E para compreender isso, é importante passar por cada fase de sua filmografia com atenção.
O Sexto Sentido e a aclamação inicial
Logo no filme que lançou o seu nome no ciclo de Hollywood, "O Sexto Sentido" de 1999, Shyamalan já utiliza muito bem as principais ferramentas do que se constitui o seu cinema: na premissa, o jovem Cole (Haley Joel Osment) é atormentado por coisas que, o espectador e o psicólogo Malcolm Crowe (Bruce Willis) descobrem posteriormente quando a criança revela que enxerga e interage com pessoas mortas, na qual vivem vagando sem um rumo definido, amarguradas pelas dores de serem apenas almas e em busca de uma redenção. A medida que a obra avança, Shyamalan arquiteta os conflitos de Cole com os espíritos que, inicialmente, assusta o garoto através do desespero decorrente da angústia que sentem em saber que talvez nunca venham a descansar de todo o martírio que atravessaram. Contudo, com o avanço da obra, percebemos que não é bem assim.
E é através de uma pequena ação de Cole ao lado de Malcolm que enxergamos a força do acreditar se manifestar em Cole quando percebe que pode ajudar a alma de uma doce jovem ter o direito de repousar em paz. Em uma sequência extensa e tocante, o menino que até então era assombrado pelo sobrenatural, decide pela primeira vez se abrir emocionalmente para aquilo que tanto temia e que pouco compreendia: ao visitar um velório de um pai desconhecido que estava em prantos, o rapaz descobre uma caixa com uma gravação que revela o principal responsável da morte da jovem, no caso, o recorrente envenenamento ocasionado por sua mãe que estava registrado em uma câmera escondida. Essa cena é, provavelmente, a mais importante ao revelar sobre o que se trata O Sexto Sentido - e sobre o que seria o cinema de Shyamalan posteriormente - , onde vemos Cole aceitando o seu papel de auxiliar tais almas em sofrimento a encontrarem o seu descanso. Ao compreender e aceitar a presença do sobrenatural em sua vida, Cole sutilmente auxilia até o seu companheiro Malcolm.
É uma abordagem bem mais direta, pouco sutil em como Shyamalan entrega essa mensagem comparada a outros trabalhos, mas funcional como exploração formal do drama e "mastigável" o suficiente para ser melhor aceito, o que aconteceu, de fato: realizado com um orçamento considerável de 40 milhões de dólares, o clássico de 1999 lucrou 672 milhões, o que conferiu uma aceitação positiva do público e da crítica americana - até então -, levando a obra para o Oscar onde arrecadou 6 indicações, entre elas, a de melhor filme na qual perdeu para Sam Mendes com Beleza Americana. Contudo, isso foi o suficiente para que o diretor ganhasse prestígio no meio Hollywoodiano logo no começo de sua caminhada, sendo comparado ao cineasta Alfred Hitchcock.
Contudo, se para alguns, o cinema de Shyamalan se encerra com o sucesso de O Sexto Sentido, Corpo Fechado e Sinais, essa afirmação se prova falha, já que, mesmo em meio ao status de "péssimo diretor" que ganharia da exigente crítica americana, o indiano logo se provaria não somente um artista autoral e preciso como um exímio contador de fábulas que nunca se envergonham de sua fantasia, mesmo que possuam o seu pé na realidade. E, com a chegada dos anos 2000, em especial, no solo americano, cada vez mais o público priorizou o real em detrimento do fantástico, o que prejudicou profundamente a aceitação inicial do cinema de M. Night Shyamalan.
Reflexos da Era Bush
E como se tudo isso não fosse o suficiente, por volta de 2007 e 2008, os Estados Unidos enfrentaram uma complicada crise financeira conhecida como a crise do subprime. Eram tempos difíceis e isso fica impresso quando olhamos as formas que o cinema Hollywoodiano transmitia isso para o seu espectador. Filmes que falavam diretamente de paranoia governamental, terrorismo ou, no caso de Shyamalan, obras que comentavam o sentimento íntimo do país, refletido na forma como os personagens do seu filme se relacionam com a presença da fantasia e da manifestação do sobrenatural em suas vidas. O primeiro exemplar é Sinais, de 2002, um ano após a queda do World Trade Center. No enredo, vemos uma família vivendo confrontando uma possível invasão extraterrestre. Contudo, esse plot é a base para os reais objetivos do indiano, que vai buscar nessa premissa de ficção e suspense, estudar a fé humana em momentos de crise.
O personagem de Mel Gibson, Graham Hess, era um padre, um homem de fé e que lidava com a existência do sobrenatural em sua vida. Contudo, a morte de sua esposa criou uma barreira, um bloqueio na conexão de Hess com o divino e sua crença no inexplicável se tornou nula, completamente fria. Portanto, ao presenciar os eventos e sinais de uma invasão, jamais é levado a crer nessa opção e insiste em resistir a aceitar o místico como uma resposta viável. Hess é, pelos olhos de Shyamalan, uma resposta ao americano pós-11 de Setembro que entrou na sessão de cinema esperando uma obra menos espirituosa e mais realista. Por esse motivo, é curioso como justamente a parte mais injustamente criticada de Sinais é a mais aberta ao apelo da fantasia e que testa a capacidade do seu espectador de acreditar: o final. Se durante 1h de filme acompanhamos uma produção que investe no sutil, se estabelecendo de modo discreto e explorando dramaticamente o impacto da possível invasão na dinâmica emocional dos personagens. Eis que Shyamalan joga toda a omissão de lado e se abre ao que existe de mais explícito em sua mensagem.
Após um "clímax" apreensivo onde a família de Hess se esconde dos extraterrestres em seu porão, vemos sua saída ocorrer de modo... tranquilo. Aparentemente não há mais perigo e seus personagens começam a se restabelecer. É nesse ponto que Shyamalan revela a presença de um alienígena na casa e a descoberta de que sua principal fraqueza é a água. É um momento divisivo e até compreensivo no que diz respeito aos comentários de público e crítica, afinal, soa estúpido ver seres de inteligência superior invadirem um planeta constituído em sua maior parte daquilo que é altamente nocivo. Contudo, Shyamalan nunca buscou a lógica. E ela pouco importa, no final das contas, já que é justamente o terço que o diretor/roteirista abnega do real em prol da entrega completa a fantasia.
Shyamalan mostra, pela primeira vez de modo claro ao grande público, a importância da fantasia em detrimento da lógica limitadora do seu cinema. E a recepção não foi tão calorosa, já que Sinais foi amplamente considerado um filme inferior ao sucesso de O Sexto Sentido e julgado fortemente pela sua dissolução simplesmente por ela não acompanhar uma racionalidade que jamais buscou. Não é sobre entender, mas sobre acreditar. E é com base nessa ideia que o indiano fez o seu próximo trabalho, chamado de A Vila e lançado no ano de 2004, dessa vez refletindo de maneira ainda mais explícita o contexto sociopolítico da América na era-Bush.
Dessa vez, a premissa tem como foco um vilarejo que aparentemente se ambienta em algum momento do passado, onde acompanhamos seus habitantes sendo aterrorizados por criaturas das quais jamais vemos com clareza para além de suas capas avermelhadas. Em prol de manter a segurança daqueles que ali vivem, é criado um acordo de paz entre as criaturas e os moradores da comunidade. Contudo, esse acordo é quebrado, o que constrói um clima de tensão constante entre aquele povoado e os monstros que cercam aquele espaço. A sugestão de uma ameaça e o recorrente estado de alerta daqueles que vivem naquele local que é um modo de camuflar o terror da situação é perspicaz ao estabelecer uma relação com o sentimento de paranoia e medo de uma América ainda atormentada pelos ecos do terrorismo, procurando continuar em meio ao desespero de um novo ataque. Assim como o ceticismo de Hess em Sinais, o pavor dos personagens de A Vila continua refletindo um país fragilizado em busca de ir para a frente ainda que em meio a uma forte sensação de desesperança que insiste em se manter presente.
Em meio a tudo isso, os habitantes da vila se mantém estáveis da forma que conseguem, preservando a inocência e pureza de um período completamente distante da contemporaneidade. Bom, ao menos é o que Shyamalan nos transmite em boa parte da narrativa, já que nunca é revelado uma data específica ou algum dado relacionado até o segmento na qual é revelado ao público que aqueles seres que assombravam os moradores do vilarejo jamais existiram e aquelas criaturas nada mais eram do que fantasias usadas para manter o povoado distante de algo que descobrimos posteriormente. Após outros eventos da narrativa, o indiano quebra completamente as expectativas ao mostrar que, do outro lado do muro, aquele local isolado é situado nos tempos atuais, o que é consolidado por uma cena dos moradores mais velhos olhando fotos de suas vidas antes de escolherem se refugiar do restante da sociedade.
E, claro, como já é de conhecimento geral, a aceitação de A Vila foi dividida: muitos que saíram descontentes da sessão de Sinais viram a obra de modo negativo e os que tiveram uma experiência positiva com seu trabalho anterior, foram recompensadas com uma obra que se mantem como o auge de sua filmografia ao observar o período sociopolítico americano pela ótica da crença já presente na filmografia de Shyamalan. As principais críticas ao filme estão nas revelações e se prendem a incoerências e furos que, novamente, são detalhes irrelevantes para o que Shyamalan realmente almeja com sua obra.
Isso é apenas uma premissa inicial, já que, é a partir dela que Shyamalan expressa seu objetivo verdadeiro ao colocar os habitantes daquele local em meio ao despertar da fantasia em busca de renascer a esperança em meio a humanidade. O início do filme contextualiza a história daquele universo através de uma narração em off muito curiosa no efeito que exerce:
A mitologia de Lady in the Water é contada para o espectador de maneira quase infantilizada, pura, doce e seguindo um ideal de fábula que explicita as intenções do diretor indiano ao resgatar a inocência da fantasia e confrontá-la com o niilismo e desesperança de uma humanidade fadada ao desespero ou, transportando para a era Bush, de um país ainda fragilizado e assustado. Em certo momento, um dos moradores do condomínio, justamente aquele que é o mais atormentado por sua inércia em frente a televisão, onde consome o noticiário e aceita seu destino de maneira pessimista, pergunta a Heep se a humanidade merece ser salva. Mas a síntese de sua mensagem é o crítico Harry Farber, personificado por Bob Balaban, que assume uma postura cética e arrogante em sua posição de ver a fantasia como algo ridículo e dentro de uma ótica que reflete a do espectador e crítica que entrou nesse universo no seu ano de lançamento. Na busca por um realismo excessivo, rejeita-se o que existe de melhor no cinema de Shyamalan: a crença no místico.
(Falo de maneira ampla sobre A Dama na Água em meu texto aqui no blog, que vale a pena conferir como complemento do que foi dito acima).
Se a ternura e inocência da fábula infantil de Lady in the Water não funcionou, Shyamalan opta por um caminho diferenciado no seu projeto seguinte, Fim dos Tempos: ao invés de buscar a esperança através do sobrenatural, aqui ele usa o próprio em uma circunstância diferente, abnegando do otimismo presente no filme de 2006 e abraçando a paranoia e medo como motores centrais em sua obra "definitiva" sobre o sentimento norte-americano pós-11 de setembro e em meio a "guerra ao terror". A abertura de The Happening já é provocativa ao remontar o desespero do cotidiano surpreendido por um evento inesperado, ilustrado no casal de moças dialogando até que algo de estranho se inicia quando as pessoas ao redor das jovens simplesmente param de andar.
Shyamalan estabelece uma atmosfera de desconfiança onde a ausência de respostas, tanto por parte do público quanto do espectador, cria um jogo intenso de desespero, reconstituindo a paranoia americana do terrorismo a partir desse expurgo cometido pela fantasia. O sobrenatural decide desistir de ajudar a humanidade e agora se une a força da natureza (o vento, inimigo invisível, sorrateiro e que se encontra em qualquer lugar possível) para destruir com a existência da raça em um verdadeira chacina. Não existe mais a fé, apenas o temor de algo que seus personagens nem sequer podem enxergar.
E esse medo invisível se situa perfeitamente dentro da paranoia terrorista em uma era presa no receio em ser incapaz de prever o que virá a seguir. A partir de certo ponto, seus personagens centrais precisam ter "fé", em outras palavras, em prol de conseguirem sair vivos daquela situação, algo que se revela a chave para combater aquela força misteriosa. Basicamente, é no acreditar que os protagonistas de The Happening conseguem enfrentar o expurgo sobrenatural de frente e saírem ilesos após tudo que enfrentaram. Uma restauração traumática que fortalece o vínculo dramático do casal, personificado por Mark Wahlberg e Zooey Deschanel.
O indiano aqui busca analisar em definitivo toda uma era de pavor e cisma decorrentes do terrorismo que assolou o imaginário norte-americano, seja pela "guerra ao terror", pela caça ao Osama ou pela destruição de dois símbolos importantíssimos de um país, resultando na morte de civis e na amargura de uma nação ao ser atacada em sua "casa" sem qualquer mecanismo de defesa que pudesse impedir tal feito. É o olhar máximo de Shyamalan para um povo fragilizado em busca de redenção e "recomeço", que, pela ótica do diretor, só é possível através da crença, da fé. E, mesmo que tais eventos voltem a ocorrer, tal qual mostra nos minutos finais de Fim dos Tempos, ainda existe esperança se a humanidade voltar a acreditar.
O "filme de estúdio"
Depois de seus fracassos de público e crítica (em sua maioria), Shyamalan opta por um golpe de coragem ao arriscar suas fichas em um terreno perigoso: a adaptação de uma obra com uma grande base de fãs, nesse caso, a animação do canal Nickelodeon "Avatar: A Lenda de Aang", lançada cinco anos antes da produção de sua versão cinematográfica que chegou aos cinemas em 2010. Se era um temor por parte dos apreciadores do trabalho do indiano, visto que se trata de um produto com alto valor comercial e sendo uma obra de estúdio, o receio era ver o estilo autoral do realizador ser diluído nas decisões do estúdio. Bom, o resultado foi completamente o oposto: se The Last Airbender inevitavelmente desaponta os admiradores do desenho animado, ele recompensa ao entregar um blockbuster que jamais deixa de carregar uma imagem própria, uma série de particularidades que transmitem os métodos do seu diretor.
Se a grande reclamação da cinefilia no que diz respeito ao cinema blockbuster hollywoodiano dos últimos anos é a escassez de personalidade nos trabalhos, o filme de Shyamalan não pode (e nem deveria) ser acusado como um exemplo desse tipo de produção. Chame do que preferir: de bobo, pouco fiel ao material-fonte (o que é uma reclamação sem nexo visto que são duas mídias distintas), mas algo que ele não tem como característica é ser genérico. Da construção plástica de seu mundo até essa busca por um viés que une tendências do gênero Wuxia (que misturam aspectos de fantasia com artes marciais) com outros elementos que se distanciam completamente do cinema ocidental. Em especial, no que diz respeito a mitologia, ao tratamento audiovisual do sobrenatural (aqui, explodindo em cores e movimento) e a toda idealização das sequências de ação que concebe.
Como bem menciona o crítico Fábio Andrade em seu texto para a Revista Cinética, esse é "o filme mais didático de toda a carreira do diretor", já que lida diretamente com os elementos da fantasia e das suas temáticas dramáticas sobre a fé no extraordinário e no sobrenatural um elemento explícito da jornada de Aang, escolhido para ser o "Avatar", essa figura messiânica que seria a salvação dos quatro reinos que dominam os elementos da natureza (Água, Fogo, Terra e Ar). Até por se tratar de uma produção com um alvo no público infanto-juvenil, Shyamalan vê a necessidade de ser ainda mais explícito do que nunca, o que revela uma forte aptidão do diretor em conceber um universo delirante e que jamais esconde sua vertente gráfica, incorporando toda a artificialidade de seu mundo a essa abordagem dramática/temática.
O ápice de tudo é a magistral sequência do "Flow Like Water", onde Shyamalan faz todos os elementos formais de sua obra evocarem o que existe de mais grandioso naquele universo, indo dos acordes da trilha hipnótica de James Newton Howard (em um dos seus trabalhos mais fascinantes) até a inserção precisa dos flashbacks pela montagem, os planos gerais do evento contrastando com os close-ups no rosto de Aang que, naquele instante, encontra seu propósito e assume em definitivo o posto que renegou. Aang decide acreditar em prol de se restaurar, de alcançar tudo que havia sido predestinado a atingir. E logo após, o filme termina reconhecendo esse momento como clímax e desfecho, não por inteiro, mas temporário da problemática, entregando um final coeso ao arco do protagonista em se encontrar, se aceitar e, enfim, acreditar.
Claro que, para além do desprezo dos fãs no que diz respeito a qualidade pela fidelidade com a série animada, uma boa parte certamente teve uma experiência negativa pelo fato de ser uma produção que lida com tradições completamente distintas de um cinema ocidental hollywoodiano, algo que - infelizmente - é de pouco alcance para o grande público. Mas ao menos, em meio a toda rejeição ao diretor, Shyamalan prova que consegue exercer sua posição de artista autoral até em uma produção comercial. E, honestamente, em tempos de uma Disney em piloto automático, considero isso como uma vitória.
(Também fiz um texto mais amplo sobre O Último Mestre do Ar que você pode conferir clicando aqui.)
As relações entre pais e filhos em Depois da Terra e A Visita
Após a rejeição coletiva do diretor através de sua adaptação espirituosa, Shyamalan parece tentar algo mais "pessoal" em algum nível ao enfocar todo o componente dramático de seus dois filmes posteriores, lançados respectivamente em 2013 e 2015, em dinâmicas familiares que circundam a relação entre pais e filhos como centro de sua jornada em busca do extraordinário como ponto de restauração emocional. Na verdade, essa abordagem já se fazia presente de maneira discreta em obras como Unbreakable, Signs e até The Last Airbender, mas é nesse ponto de sua filmografia que a temática alcança, de fato, uma presença narrativa ainda mais ativa do que anteriormente, quando era um elemento diluído em meio a outros objetivos do cineasta.
Em After Earth, lançado no ano de 2013, Shyamalan busca evidenciar toda essa relação de modo direto, sendo ela a base para o avanço da narrativa, situando essa reconciliação de um pai ausente com seu filho dentro de uma corrida por sobrevivência na qual o jovem Kitai, personagem de Jaden Smith, precisa superar obstáculos pela trajetória que operam como uma jornada de amadurecimento e desprendimento de suas raízes paternais. Tanto que, em certo momento, Kitai perde o contato com o Cypher (Will Smith), seu pai, precisando descobrir como sair daquela situação ao seu modo próprio. A ligação pai/filho aqui transcende os espaços físicos de tal modo que, em certo momento Cypher, que só tem como ver o filho através de mapas e câmeras, sem qualquer maneira de se comunicar com ele e mesmo assim ordena os caminhos na qual o filho executa, quase uma espécie de contato espiritual que vai além da distância na qual ambos se encontram.
É através da superação pelo extraordinário, pela fantasia em sua essência pura (todo o ambiente gráfico da ilha e as possibilidades que ele oferece) que o diretor concebe a relação emocional de Cypher e Kitai que, mesmo a quilômetros de distância de sua figura paterna, nunca esteve tão próximo dele. A restauração do vínculo paternal só existe aqui por conta da fantasia, de jogar seus protagonistas nesse ambiente artificial de ficção para que os mesmos descubram o poder da relação que foi perdida, renegada através da presença inexistente do personagem de Will Smith na vida de seu filho. Se a fantasia nas obras anteriores de Shyamalan era um ponto de restauração interna dos personagens, aqui em After Earth não se restaura apenas uma figura em cena, mas todo um relacionamento emotivo que circunda duas personalidades até então distantes uma da outra através do extraordinário.
Contudo, é em A Visita que esse ideal do "sobrenatural" (ou da sua sugestão em cena) que restaura os indivíduos ligados a dilemas familiares atinge seu ponto máximo. Se antes, esse artifício vinha como um modo de reviver uma dinâmica dramática perdida, agora as intenções de Shyamalan em cena são outras. Não é mais sobre resgatar uma relação, mas em lidar frontalmente com os traumas dessa ausência paternal de modo objetivo. E não existe segmento que melhor reafirme isso do que aquele na qual vemos Becca (Olivia DeJonge) sendo aprisionada pelas lentes da câmera em meio a perguntas desestabilizadoras de seu irmão mais novo, Tyler (Ed Oxenbould), que revivem lembranças dolorosas na qual a jovem prefere esquecer do que enfrentar.
Tyler questiona a irmã do motivo que a impede de se olhar no espelho, usando como detalhe a roupa que a jovem vestiu ao avesso. Após esse momento, Shyamalan intercala o zoom gradativo com um close-up da jovem segurando a câmera em frente ao seu rosto, em prantos, comentando indignada que, ao ir embora, seu pai lhe deixou apenas um cartão. Becca transmite uma imagem de segurança, de controle, não somente das suas emoções e conflitos, mas de tudo ao seu redor - até pelo fato de estar "dirigindo o filme", mas é em seu momento mais pessoal que até o seu rigor formal na direção some, registrando apenas o rosto de uma menina com um vazio que escolheu preencher com a amargura silenciosa da ausência paternal.
Em outro momento, vemos Tyler comentar abertamente sobre um jogo que perdeu simplesmente por ter "travado" em meio ao campo, expressando acreditar que a culpa do abandono foi o simples fato de ter perdido por não ter conseguido tomar uma decisão em um momento decisivo. Parece algo tolo, mas na mente de um pré-adolescente em estágio de crescimento, uma falha parece um desvio gigantesco, um martírio maior do que deveria ser. Essa é a força dramática de A Visita ao propor uma experiência que opera em uma constante sugestão do sobrenatural para propor uma jornada de constante confronto, inicialmente discreto, mas logo se materializando em algo direto, físico, objetivo em prol de fazer com que seus personagens compreendam e restaurem seus traumas através do... trauma.
Na premissa, a jovem aspirante a cineasta Becca, e o seu irmão, Tyler, decidem passar uma semana na casa dos avós que nunca conheceram em prol de conseguir reconciliar a mãe com seus pais através de um documentário que, aos poucos, começa a capturar eventos estranhos que levam os irmãos a acreditarem que algo de errado está acontecendo com seus avós. Na verdade, o primeiro a levantar fortemente essa suspeita é Tyler, já que Becca reluta em crer que é algo que vá além do envelhecimento daquelas figuras, o que se revela uma maneira curiosa de Shyamalan inserir esse contraste entre fé e ceticismo na relação dos jovens. Todavia, o foco do diretor em A Visita não é diretamente esse, mas está em expôr uma jornada de confrontamento traumático, onde seus protagonistas lidam com suas feridas e restauram o seu interior em prol de serem livres da amargura e do rancor, encontrando as suas redenções pessoais.
Esses conflitos são, durante boa parte do filme, sutis, estão sendo enfrentados de maneira discreta, através de pequenos depoimentos, detalhes e até mesmo pelo modo que Shyamalan lida com elementos como o pavor de germes de Tyler, que sempre parece ter um viés de expôr essas marcas do trauma nos protagonistas através do desenvolvimento de temores bem específicos. E é no final que todos eles são enfrentados de modo direto: Becca se encarando depois de um longo tempo sem ter a coragem de se olhar diretamente, acertando com a cara no vidro e conseguindo usar os cacos para se livrar da situação; Tyler catatônico tal como no jogo que citou e sujo de cocô que, diferentemente da sua história, opta por tomar uma decisão importante em atacar um dos antagonistas, gritando frases de um jogo de futebol americano no processo.
A restauração do trauma através... do trauma, da experiência traumatizante e desconfortável que faz Becca e Tyler encontrarem sua redenção. Ao final, vemos como uma das últimas sequências do filme, um sincero abraço entre mãe e filha selada pelo conselho materno da personagem de Hahn: "Por Favor, não guarde rancor, Becca". Duas personagens que, ao seu modo, encontram o perdão, se livram da dor e do martírio ocasionados pela amargura e combatem o trauma através do confronto direto a eles. E o final não poderia ser mais adequado: em certo momento, Becca menciona clipes que guarda de momentos especiais ao lado de seu pai, memórias na qual diz que não irá colocar no filme, já que significaria que ela perdoou aquele que a abandonou. E é justamente nos minutos finais que nos deparamos com essas gravações, fechando o ciclo e mostrando que, depois de tanta amargura, Becca compreendeu a necessidade de perdoar, tanto sua representação paterna, quanto a si mesmo.
A Trilogia Eastrail 177
Os anos 2000 foram muito definitivos no que diz respeito ao sucesso comercial que se tornou o subgênero dos super-heróis: se, de um lado, o diretor Bryan Singer revolucionava o nicho com o audacioso X-Men: O Filme, do outro estava Shyamalan que, recém saído dos olhos da academia que o consagrou com 6 indicações por The Sixth Sense, escolheu reimaginar o mito do super-herói através de uma ótica realística, mas que jamais abnegasse o poder inexorável da fantasia em seu cinema. E assim surgia Unbreakable, traduzido para o mercado brasileiro como Corpo Fechado, que servia como um olhar peculiar da relação entre o ser humano e o fantástico.
Na premissa, David Dunn (Bruce Willis) é o único sobrevivente de um desastre, algo que atiça a curiosidade de Elijah Price (Samuel L. Jackson), que surge com a ideia de que Dunn seja um super-herói. Através dessa base sólida que Shyamalan encontra no ordinário (David vive em uma realidade simples e trivial) o extraordinário que só é realmente concretizado a partir do ponto que Dunn começa a acreditar. Novamente surge o embate entre o lógico e o espiritual, da fé contra o ceticismo, na qual o protagonista busca sempre por métodos de contornar os fatos de Price com algo que, teoricamente, possuiria uma explicação "racional". É curioso como, por exemplo, a primeira pessoa que acredita totalmente nisso é o filho de David, Joseph (Spencer Treat Clark).
A pureza de uma criança que possuí o poder de acreditar na fantasia é inigualável na visão de Shyamalan e colocar Joseph como o único além de Price que crê inteiramente na então possibilidade de seu pai ser um super-herói reitera isso muito bem. Muito além de colocar seus personagens ambientado em uma fantasia explícita, o indiano escolhe o sutil para expôr de modo grandioso a sua abertura para a fantasia. Sequências como Dunn levantando os pesos revelam discretamente a manifestação do fantástico através dos pequenos detalhes. É, talvez, um dos filmes definitivos sobre a capacidade restauradora da fantasia na vida do seu indivíduo, já que é através do sobrenatural, do inexplicável, que o protagonista encontra seu propósito. Seu lugar no mundo.
Muito se especulou a respeito de uma sequência de Corpo Fechado, mas, enquanto isso, Shyamalan prosseguia sua filmografia até chegar em Split, ou Fragmentado, lançado em 2017 sob a produção da Blumhouse, que também auxiliou na realização de A Visita. Até então, era esperado como mais uma produção do realizador e que seguia essa teórica "redenção" (ainda que nenhum dos seus trabalhos seja necessariamente ruim) do realizador, voltando ao prestígio do público e da crítica. Contudo, era nos minutos finais que era criada a ligação entre os mundos de Unbreakable e Split ao trazer Dunn em uma aparição rápida, mas que teve um efeito catártico nos espectadores. Essa descoberta só potencializa o trabalho narrativo do diretor em conceber mais uma produção sobre a experiência traumática em prol da superação de traumas internos.
O(s) personagem(ns) de McAvoy no filme sequestram três jovens, entre elas a adolescente Casey (Anya Taylor-Joy), que recebe um olhar especial pela sua segurança e racionalidade ao enfrentar as situações com esperteza e sempre planejando de maneira perspicaz. Mas ela é contida, essencialmente melancólica e quase sempre distante da realidade. É nos flashbacks (elemento que pode ter exercido um efeito controverso e bem indesejado na experiência de alguns espectadores) que descobrimos as feridas que sua protagonista amarga em seu interior e as feridas (psicológicas e físicas) que carrega consigo. Casey não é diferente de Kevin (McAvoy), uma criança destroçada que cria múltiplas personalidades simplesmente para não precisar se fazer presente em seu corpo, mas se perder em meio aos seus medos, se escondendo em algum lugar entre as várias figuras que habitam o seu corpo, incluindo a Besta, uma espécie de monstro irracional que reconhece aqueles que são verdadeiramente puros.
E que só existe através da crença de Dennis e Patricia, duas personalidades da horda, que carregam a fé de que aquela criatura iria mudar o mundo ao revelar o sobrenatural e o extraordinário dentro da realidade. É nessa crença que se estrutura as decisões dos personagens em prol de restaurar o mundo através do fascínio. E ainda que seja o mais agressivo da trilogia, tematicamente e formalmente falando, consegue ser espirituoso em toda a sua essência narrativa, tal qual o seu antecessor e o seu posterior.
O exorcismo cinematográfico de Vidro
"Eu acredito, eu acredito...", diz uma das personalidades de Kevin em um dos momentos que antecedem o clímax de Vidro. Uma frase que descreve intensamente a essência dramática do trabalho de Shyamalan no capítulo derradeiro de sua trilogia. E enquanto os dois capítulos anteriores transitavam constantemente entre o realismo e a fantasia, Vidro soa como um legítimo exorcismo do diretor com relação a toda sua filmografia. Curioso que, caso esse fosse o último filme de sua carreira, seria um desfecho literal de toda a sua jornada. Um encerramento que compartilha tanto uma melancolia quanto um senso de esperança, que transpõe o embate de racional e sobrenatural que se vê nos debates de suas obras materializado como premissa.
Basicamente é o olhar definitivo de Shyamalan sobre a relação do espectador com a mitologia do super-heróis, com a fantasia, com a fé e, claro, com o seu cinema. São anos amargando fracassos críticos justamente pela ótica frágil de tentar olhar a sétima arte apenas por uma concepção limitadora sem jamais absorver que, o que existe de mais encantador, é justamente aquilo que é mais ignorado. O indiano mostrou em todos os seus "desastres" algo que poucos diretores que surgiram dos anos 90 pra cá conseguiram exibir: o acreditar no encantamento do seu cinema da maneira mais pura e inocente.
Talvez um dos instantes mais marcantes de Vidro reside em um diálogo de Elijah (ou Mr. Glass), com Hedwig, uma das personalidades da horda, que é uma criança:
- Ur, então qual é o seu superpoder? Sua mente?
[Elijah acena com a cabeça]
- Qual o meu?
- Você tem nove para sempre, certo?
- Sim
- Isso é incrível. Você pode ver o mundo como ele realmente é.
Shyamalan entende algo que poucos diretores na qual operam suas obras dentro da fantasia compreendem atualmente: a real pureza só pode ser vista pelos olhos inocentes e imaginação criativa de uma criança. Seu cinema é "infantil" nesse quesito, já que a fé na qual Shyamalan demonstra ter na fantasia existe dentro de um imaginário infantilizado, doce e repleto de esperança onde, por mais duro que seja o mundo, ao menos a fantasia serve como refúgio. Aqui, para o indiano, ela simboliza a restauração. A crença e o otimismo que as suas obras sempre revelam, em algum nível, vem da transformação de suas figuras em cena dentro de uma base sobrenatural ou fantástica. É a alma das obras que levam suas figuras dramaticamente do ponto A ao B.
É o jovem Cole e o fantasma de Malcolm em O Sexto Sentido, é o padre Hess e sua fé perdida em Deus no Sinais, é Cleveland em A Dama na Água que agradece a Story por ela ter "salvado sua vida", é a reconciliação de Wahlberg e Deschanel casal em Fim dos Tempos, é o perdão de Becca e Tyler ao seu pai em A Visita e, aqui em Glass, é a esperança que o protagonista, Elijah quer oferecer a humanidade ao mostrar que o extraordinário existe. Se Price é vendido como antagonista (e visto o quão repulsivo foram os seus atos do passado, é uma posição justificável), aqui em Vidro, ele é o verdadeiro herói. Aquele que, acima de tudo, acreditou no quão extraordinária é a humanidade. Se vista com os olhos de uma criança, claro.
Pode-se argumentar que Glass é uma obra metalinguística, já que é Shyamalan expondo tudo que explorou em sua filmografia em uma potência máxima. É uma obra instigante e provocativa em diversos aspectos, seja pelas suas incongruências e "furos de roteiro" não acidentais que revelam como a crença nesse universo é maior que frivolidades como essa em uma obra assumidamente fantasiosa, ou até pela premissa de fazer seus três personagens centrais se questionarem da suas crenças no sobrenatural, em criar neles a dúvida sobre a sua fé. E é nesse ponto que entra uma das figuras mais essenciais de Vidro: a doutora Ellie Staple, personificada por Sarah Paulson. Para além de sua presença física na mise-en-scène, com seu tom de voz suave e sua manifestação sobrenatural que engole os protagonistas naquele espaço, ela é a essência que contraria toda a fantasia naquele contexto. Nesse caso, Ellie não difere de Harry Farber, interpretado por Bob Balaban em Lady in the Water.
Assim como Farber, Staple ridiculariza e enxerga como completa loucura a crença na ideia de super-seres no mundo e tenta contrariar os seus personagens ao expôr provas "racionais" que desarma a ideia do extraordinário ter se manifestado naquelas "pessoas comuns". A personagem nada mais é do que o reflexo de uma observação recorrente na carreira do cineasta, que herda uma negatividade fechada apenas a uma ótica realista limitante, frágil e que jamais permite o espectador testemunhar o quão fascinante é o que está presenciando em tela, ainda que seja radicalmente diferente de qualquer coisa na qual ele esteja habituado. Staple representa a ausência da fé no cinema, através da descrença no místico.
E se o projeto de Shyamalan já reflete uma essência provocativa nesses pequenos detalhes da construção imagética da sua obra, é no ato final que o cineasta incorpora o completo desapego com qualquer expectativa do seu público. Em tempos de grandes batalhas como clímax de uma produção do subgênero de super-heróis vide Vingadores: Ultimato, lançado apenas 3 meses após Glass, o que é coordenado pelo indiano aqui é a definição completa de coragem e frustração. Se a promessa de um grande desfecho, catártico e repleto de cores, sons e efeitos é concebida, o que vemos no desfecho é um anti-clímax poderoso ao encerrar a obra e centralizar o embate entre os personagens em um estacionamento.
Ignorando o aspecto macro de uma dissolução genérica que o cinema de super-herói ajudou a propagar com o tempo, Shyamalan escolhe o que existe de mais íntimo. É "decepcionantemente amável", como bem disse o cinéfilo e crítico Davi Lima no seu perfil do Letterboxd. Ele fecha o arco, mata seus protagonistas, mas revela as verdadeiras almas de Vidro, que sequer era o próprio Elijah: Joseph, Casey e a mãe de Mr. Glass. Através de toda a construção dos personagens, essas três figuras foram de extrema importância, em especial, por serem um dos poucos que demonstram crer profundamente no sobrenatural (Joseph acredita desde o dia que descobriu que seu pai era um super-herói, quando era uma inocente criança), e, através da fé que revelam possuir, são aqueles que propagam ao mundo que o extraordinário é real. O sobrenatural, a fantasia, o místico existe. Ele é real. Basta apenas acreditar.
O último plano de Vidro é aquele que, certamente, permeia a mente do indiano: rejeitado por crítica e público, transformado em piada e chacota durante anos, o realizador expressa em cada frame, cada pequeno momento, cada detalhe da sua encenação um completo e puro amor naquilo que faz. Ele crê nesses mundos de habitantes de mundos aquáticos, super-heróis, fantasmas, alienígenas, entre outros como uma fuga do pessimismo da realidade que vive. A fantasia, para além de uma ferramenta de restauração, um refúgio na qual, por breves momentos, ele pode ser uma criança novamente. Pura, sonhadora e esperançosa. No final, é como bem ilustra a sequência do Lady in the Water na qual Heep precisa se comportar como uma criança para que descubra o resto da história. Shyamalan quer que, ainda que durante 2h, voltemos a doçura de vermos o mundo por olhos infantilizados, repletos de fé.
Só resta ao público uma coisa para alcançar isso: acreditar.
(Agradecimentos especiais ao Victor Martins e Miguel Fernandes que me auxiliaram com algumas correções no artigo)
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