Avatar (idem, 2009, James Cameron) | Crítica


Por João Marco

(Publicado originalmente no dia 5 de outubro de 2022)

O cinema de James Cameron, em maior ou menor escala, é essencialmente humanista, no sentido de valorizar as virtudes dos indivíduos ao seu redor em como eles enxergam e protegem ideais de fé, empatia, igualdade, união e afetuosidade. Os reais antagonistas em sua filmografia são justamente movidos por tudo aquilo que vai contra tais crenças e, até por isso, é curioso que o T-800 que foi apresentado como um antagonista implacável no primeiro Exterminador do Futuro volte a aparecer no segundo para ser ressignificado e assim, enxergar a humanidade com a ótica de Cameron, que usa o ponto de vista do jovem John Connor em prol de modificar a máquina e despertar nela algo verdadeiramente humano

Partindo desse ponto e estabelecendo essa conexão entre o viés dramático humanista com a construção formal em constante evolução dentro do seu cinema é que temos os dois pontos disruptivos de sua carreira: Titanic, lançado em 1997 e, claro, Avatar. Ambos compartilham semelhanças não apenas em seu impacto cultural — algo inegável até para quem desaprova os filmes — mas em como lidam com esse viés humanista de sua narrativa.

No primeiro, acompanhamos a história de amor entre figuras distintas por suas condições e que eram distanciadas por conta de suas posições sociais, além de prejudicadas por antagonistas que, em essência, visavam tudo que era oposto ao viés de seus protagonistas. O romance de Rose e Jack — eternizado nas memórias da primeira — era, acima de tudo, um confronto clássico de bem x mal, encenado através da reencenação de lembranças na qual só o digital (as maquetes e o CGI) podem recuperar.

Já em Avatar, esse confronto entre bem x mal se desenvolve por uma perspectiva mais direta e clara, onde os antagonistas são ainda mais protocolares (exploradores gananciosos, militares frios e desumanos) e muito mais universais no que diz respeito ao sentimento que despertam no espectador.

O coronel Quarltch (Stephen Lang), por exemplo, pode até ter alguma breve simpatia no jeito que dialoga, mas seu desdém pela cultura dos Na’vi, sua rejeição a qualquer sentimento de humanidade (“It’ll be humane. More or less.”, diz ele em um certo instante), sua frieza, seu ódio e sua essência implacável revelam que aquele não é um simples nêmesis, mas um monstro incontrolável, uma verdadeira máquina que algum dia já foi um humano — um espelho curioso do T-800 no segundo Terminator que citei na abertura.

Outro exemplo é Selfridge (Giovanni Ribisi), uma figura de ordem movida pela covardia declarada e pela ambição desenfreada, na qual tampouco mede esforços ou se preocupa com a pilha de corpos que deixa pelo caminho, contanto que isso não afete sua jornada impiedosa em prol de extrair as riquezas de Pandora e arrecadar uma grande quantia com isso. Nesse sentido o que move Selfridge e Quarltch é, respectivamente, a ganância e a frieza, sentimentos que se contrapõe a qualquer fagulha de empatia ou sensibilidade que Cameron defende ao filmar os cientistas Grace (Sigourney Weaver), Max (Dileep Rao) e Norm (Joel David Moore), assim como a piloto Trudy (Michelle Rodriguez) e sua relutância em seguir as ordens insanas de Quarltch, se retirando do seu posto no segmento que os militares destroem a árvore. E, claro, o protagonista que, movido pela ambição de recomeçar, começa a modificar sua perspectiva à medida que seu vínculo com os Na’vi e, em especial, com Neytiri se torna cada vez mais forte.

Todos os arcos e os arquétipos que Cameron escolhe para preencher a dramaturgia de Avatar são movidos por uma ingenuidade muito reveladora, na pureza do acreditar no melhor da espécie, no amor pelo próximo, na fraternidade e na ânsia de lutar pelo que vale a pena. Por isso, o cineasta não hesita em fazer de seus personagens os mais universais possíveis, seja o herói traumático e nobre, a nativa guerreira, a cientista que constrói uma relação de admiração com aquele local, o militar nefasto, o “chefe” ganancioso entre outros.

A intenção aqui é estabelecer aquelas figuras clássicas em confronto com um universo que existe através da evolução tecnológica das imagens. Assim como em Titanic, o cineasta se apropria das possibilidades audiovisuais que tem em mãos para estabelecer uma ligação poderosa entre uma premissa tradicional e emocionalmente ampla em seu impacto, mas dentro de um molde contemporâneo.

Nesse sentido, lembrar de Avatar pelo seu impacto dentro da indústria é válido, mas associar o filme de Cameron apenas ao abalo cinematográfico por conta do 3D e na aprimoração das mecânicas de motion-capture e CGI que ampliaram o caminho para essas tecnologias se revela um erro, já que esses recursos são instrumentais para a narrativa que o cineasta concebe, de não apenas levar o espectador para aquele mundo, mas de fazer uma conexão emotiva através do deslumbre de passear por Pandora, admirar sua cultura, seus gestos, suas peculiaridades, sua fauna e flora e, em seguida, ter que lidar com a sua possível destruição.

Toda a dinâmica de mise-en-scène estabelecida aqui é de completo fascínio, passeando pelos ambientes com planos gerais que capturam a imensidão de cores e texturas daquele espaço e compreendendo a necessidade de explorar a grandiosidade, mas de se aproximar, de fechar o quadro e revelar a beleza nos menores detalhes. Pandora ganha vida e nada é mais cinematográfico do que contemplar o irreal se tornando real, algo que o artifício do 3D valoriza ao expandir o campo das imagens, tornando aquele mundo ainda mais próximo e mais imersivo.

Que Avatar reutilize conceitos e arquétipos clássicos do cinema não é um problema, especialmente pelo fato de que Cameron sabe utilizar cada artifício de conexão universal com o espectador em um formalismo admirável, concretizando aquele universo dentro de uma lógica contemporânea, mas sem esquecer do tradicional e do humanista, elementos que se adequam aos componentes visuais inovadores para contar uma história que já escutamos, mas com novas cores.

E o que faz diferença não é quantas vezes ouvimos aquela história, mas qual a forma que iremos ouvi-la novamente.

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