Pânico (Scream, 1996, Wes Craven)


Por: João Marco

(Publicado originalmente em 2020)

Lidar com a autoconsciência em uma obra audiovisual fica em uma linha bem tênue entre uma espécie de referenciamento preguiçoso que joga milhares de referências em prol de arrancar um “olha, isso é uma homenagem a tal filme” do espectador e uma desconstrução que realmente se preocupa em analisar os temas e desfazer certos conceitos e regras pré-estabelecidas em uma premissa ou em um gênero (ou subgênero) como um todo. 

Pois é exatamente esse segundo caminho que Pânico de Wes Craven escolhe ir: existem inegáveis reverências ao movimento dos filmes Slashers que dominou os anos 80 com milhares de derivativos e clones do sucesso propagado por produções como O Massacre da Serra Elétrica e Halloween na década de 70, mas para além desse tributo as fórmulas desgastadas de uma geração passada, o longa de Craven é, em uma análise cuidadosa, uma desconstrução satírica desses moldes narrativos e dramáticos de tais películas.

Estruturalmente falando, é o mesmo exemplar de gênero, usando de tais regras criadas com o tempo para mover os diversos eventos narrativos. Contudo, é na quebra desses caminhos recorrentes que se apoia o trabalho de Craven. Diferente de outros trabalhos que jamais parecem fazer com que seus personagens conheçam as leis básicas do desenrolar de seus eventos, aqui em Pânico, o diretor concebe um universo onde boa parte das “vítimas” tem uma noção do que recorrentemente ocorre em um Slasher. 

Elas sabem os mecanismos que permitem uma produção daquela avançar. Talvez o mais emblemático dos momentos é aquele que vemos Randy (Jamie Kennedy) explicar as regras para continuar vivo em uma produção do subgênero, dividindo elas em três categorias: não transar, não ingerir bebidas alcoólicas e jamais dizer “volto logo”, pois é bem provável que você não retorne.

Durante essa sequência, duas dessas coisas acabam ocorrendo: em paralelo a isso, a protagonista, Sidney Prescott (Neve Campbell) faz sexo com Billy (Skeet Ulrich) e Gale (Courtney Cox) sai de seu furgão, avisando a seu colega de trabalho que “voltará logo”. Esse é apenas um exemplar da desconstrução de Craven, já que, após as regras serem estabelecidas e vermos simultaneamente que duas personagens executaram as exatas ações que foram informadas ao espectador, nós do outro lado ficamos em uma posição de apreensão para descobrimos que tal regra tampouco possui um efeito aqui, já que tanto Gale quanto Sidney terminam vivas. Craven recorrentemente ironiza os modelos construídos por anos dentro desse subgênero das maneiras mais criativas possíveis.

Certo momento, Sidney recebe um telefonema onde conversa com o assassino que pergunta o filme de terror favorito da protagonista, na qual ela responde não assistir e justifica: “São sempre a mesma coisa. Um assassino idiota perseguindo uma garota de seios grandes que não consegue atuar, que está sempre subindo as escadas correndo quando ela deveria sair pela porta da frente. É um insulto”. Esse comentário, simultaneamente, é uma desconstrução que ridiculariza a abertura do próprio filme e é uma visão desfeita logo em seguida, quando a personagem tem a casa invadida pelo assassino e a primeira opção que escolhe é… subir as escadas. 

Até mesmo a invulnerabilidade do serial killer é desfeito, já que Ghostface, diferente de outros pertencentes ao Slasher apanha, cai, escorrega e de modo até Kitsch, falso, artificial e que renega completamente a estabilidade física de tais figuras em outras produções. Ou em uma situação de completo desespero, a pessoa correria sem qualquer risco de tombo ou jamais acertaria o assassino?

Toda a dissolução eleva essa ideia da desconstrução dos moldes do cinema de Slasher a outro patamar: após a descoberta de que Billy e Stu (Matthew Lillard) eram, de fato, os responsáveis pela onda de morte do Ghostface, ambos começam a dissertar sobre o desfecho da “história” que planejam executar. Ambos começam a se tornarem co-autores do encerramento do próprio filme que estão ambientados. 

E o típico final onde a virgem puritana sai viva por intermédio de outros personagens que aparecem em uma situação X da narrativa é destruído de modo igualmente satisfatório, onde Sidney recupera o controle da situação que se encontrava e fica um passo a frente dos serial killers, assumindo o seu papel de protagonista da trama de modo literal e encerrando com a confirmação de sua importância, quando Randy diz que “Este é o momento em que o assassino supostamente morto volta à vida, para dar um último susto”, na qual Sidney termina dizendo: “Não no meu filme”.

É até complicado explicar o impacto cultural de uma obra como Pânico, já que o sucesso financeiro do filme de Wes Craven abriu portas para reviver o Slasher por mais alguns anos, com clones como Prova Final (1998), Eu sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado (1997), Lenda Urbana (1998) e diversos outros que serviram como um retrato de uma geração cansada das fórmulas repetitivas de subgêneros e procurava inovação, mas sem perder o carinho que tinham por produções que marcaram uma época na qual muitos não viveram (ou viveram o final). E é exatamente o que Scream simboliza para a década de 90: uma crítica autoconsciente e satírica em diversos momentos que jamais deixa de abraçar com saudosismo as películas que possibilitaram a existência desse eterno clássico.

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