Amor à Flor da Pele (Faa yeung nin wa, 2000, Wong Kar-Wai)
Por: João Marco
O amor, a paixão e o desejo, ao serem acumulados, transbordam de algum modo naqueles que compartilharam esse sentimento, seja ao ocasionar as feridas mais dolorosas ou as memórias mais belas, ainda que igualmente angustiantes sempre que são revividas. O tempo perdido agora está distante do nosso alcance e só o que resiste são os arrependimentos ao não valorizar os pequenos momentos que, em retrospecto, são tão grandiosos. Inúmeras histórias de amor no cinema utilizam a abordagem do amor impossível ou incapaz de ser concretizado como fundamento dramático, mas Amor à Flor da Pele, dirigido pelo cineasta chinês Wong Kar-Wai, é muito mais cruel ao entregar uma fábula de amor e desejo que jamais encontra qualquer um desses elementos em seu ponto de êxtase. A tragédia aqui é perceber que nem a breve concretização do que Chow e Su Li sentiram ocorreu e ambos levaram eternamente a possibilidade do que poderia ter acontecido, mas que nunca foi além de um mero “talvez”.
Vivendo em apartamentos paralelos, Chow (Tony Leung) e Su Li-zhen (Maggie Cheung), compartilham da mesma devoção e afeto pelos seus respectivos cônjuges, tal qual do sentimento melancólico de solidão e exílio na qual adentram que é visto, por exemplo, nas inúmeras recusas de Su em almoçar ou jantar com seus vizinhos, sempre adiando para um outro momento. Nesse insulamento que se encontram, presos nos limites dos espaços que habitam (o quarto, o ambiente de trabalho), ambos descobrem que seus parceiros se conhecem e que possuem uma relação extraconjugal, o que aproxima os dois amantes desolados, tal qual intensifica a sensação de entretecimento que os rodeia.
Porém, essa aproximação jamais resulta em um vínculo que vá além da concretização dos gestos de empatia que dividem um pelo outro, seja os olhares quebrados de compadecimento dos personagens ou pelos abraços pesarosos que acolhem as lágrimas e angústias engarrafadas. Mas, é através dessa compreensão que nasce algo ainda mais poderoso e Kar-Wai faz questão de intensificar cada um dos mais minuciosos detalhes através de suas imagens, indo das hesitações em encarar os olhos um do outro até o toque sutil das mãos que é desprezado de imediato ao ser encarado como algo moralmente indevido segundo o casal apenas para, mais tarde, ser a consolidação de um desejo incompleto, onde Su deita sua cabeça sobre os ombros de Chow e, então, unem as suas mãos em um movimento de laço afetivo. Wai transforma aquilo que, de certo modo, é um beijo doloroso de adeus em um ato silencioso que reflete o interior dos protagonistas.
Apesar de emocionalmente destroçados, Chow e Su insistem em manter algum tipo de fidelidade moral que repele completamente a crescente atração que surge no interior de ambos, guiada por um puritanismo que, perante a ótica do casal, permite que sejam íntegros em meio ao ocorrido. Por isso que, em certo ponto, Chow expressa a intenção de evitar seguir o mesmo caminho ao dizer “Não seremos como eles” para Su, revelando que a repressão constante dos seus sentimentos se devem a uma idealização de lealdade a parceiros que tampouco se fazem presente na vida dos dois. Aliás, uma estratégia usada por Wai e pelo diretor de fotografia Christopher Doyle para evidenciar a ausência dos cônjuges na vida do casal é filmá-los sem revelar seus rostos, seja registrando eles por suas costas, em reflexos borrados de um espelho ou até mesmo fora do campo, revelando uma presença metafísica e até fantasmagórica no cotidiano de Chow e Su, como se vivessem assombrados pela sombra dos seus consortes.
Contudo, para além do aprisionamento que sentem em uma união matrimonial insatisfatória, a maior prisão dos protagonistas é a solidão e essa atmosfera enclausurada ganha contornos através dos planos em close-up que Wai e Doyle inserem ao registrar a vida dos personagens, confinando Chow e Su dentro do quadro e evidenciando a repressão interna através da ótica externa. Não apenas em planos fechados, mas todo o posicionamento de ambos na mise-en-scène, seja centralizado nas quinas de portas abertas, nas grades das janelas de uma casa abandonada ou até mesmo nas extremidades da imagem revelam isso - e vale destacar a panorâmica lateral que conecta o casal em dois ambientes, separados pela parede que divide os dois quartos na qual vivem. Esse clima recolhido se mantém até mesmo quando compartilham a mesma cena, raramente mostrando ambos de forma nítida, mas sempre distanciando-os, expondo o vazio que existe entre o interesse que nutrem.
Porque, mesmo que o “destino” posicione Chow e Su constantemente no mesmo caminho e possibilite inúmeras chances dos personagens concretizarem o desejo gradativo que floresce, nada surte efeito quando todas as investidas são desperdiçadas pela pressão moral que engole o casal e os levam para uma jornada de dores e feridas eternas, onde o tempo engoliu as lembranças e agora só resta as lamúrias de algo que jamais voltará. Nesse sentido, o segmento final de Amor à Flor da Pele é um reflexo poderoso do tempo acerca da paixão engarrafada de seus protagonistas, onde um segredo pode ecoar eternamente em um mero buraco nas ruínas de uma estrutura velha, desgastada, mas que guardará eternamente o martírio de um amor jamais consumado e que transformou os belos detalhes em espinhos torturantes de dois amantes separados pelo tempo.
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