Kick-Ass: Quebrando Tudo (Kick-Ass, 2010, Matthew Vaughn)
Por: João Marco
Em entrevista para o portal britânico The Guardian em 2022, o escritor Alan Moore discorreu um pouco sobre a sua exaustão acerca da indústria de quadrinhos, especialmente o nicho dos super-heróis e sua bem sucedida passagem para o cinema. Ao citar a dita "maturidade" que essas histórias teoricamente absorveram na metade dos anos 80 (e fazendo o mea culpa, já que Watchmen foi um dos títulos mais fundamentais para alimentar tal discurso), o quadrinista menciona não acreditar nesse pretenso amadurecimento tão aclamado pela mídia. Em suas palavras, Moore diz que "a maioria dos títulos de quadrinhos eram praticamente os mesmos de sempre".
Além disso, Moore expressa seu temor ao mencionar que achava perigoso ter milhares de adultos em fila para assistir um filme do Batman. Segundo ele, tal infantilização que apela para tempos mais simples podem ser percussores do fascismo; o quadrinista ainda exemplifica que, no mesmo ano em que os Estados Unidos elegeram o republicano Donald Trump como presidente, alguns dos grandes e mais comentados lançamentos eram filmes de super-heróis. A perspectiva de Alan Moore sobre essa indústria e sua migração para sessões de cinema lotadas, com pessoas fantasiadas dos personagens que verão em tela, eufóricas com aparições especiais e sentadas até o final dos créditos para ver uma sugestão do próximo filme é aberta a discussões. Mas, se tem algo que presenciamos hoje é que esse domínio da cultura popular realmente não gerou bons frutos.
Primeiramente, em nível mercadológico, a ocupação massiva das salas de cinema com lançamentos bombásticos que entram em cartaz para gerar demanda e retiram o direito de outras produções terem o seu público se torna evidente quando, no final de 2023, a Warner começa a sobrepôr as sessões do hit Godzilla Minus One para estrear o inócuo Aquaman 2: O Reino Perdido. Somando isso ao fracasso econômico de As Marvels (grande o suficiente para fazer a Disney interromper sua linha de produção, lançando apenas um filme esse ano) , nota-se que essa tão alarmante popularidade do subgênero está com os dias contados. E o resultado dos 15 anos onde a Marvel/Disney tomou a cultura popular para si é notável em detalhes como as recentes discussões sobre a necessidade de sequências de sexo em filmes (e é simbólico quando se cria um alarde para a "primeira cena de nudez" do cinema de Christopher Nolan e ela ser um topless da Florence Pugh - e apenas dela).
Ok, mas onde Kick-Ass entra nessa equação? Ele começa a ser relevante no momento em que é criado; não o filme, mas sim o quadrinho. Escrito por Mark Millar, um dos fortes pilares dessa "era adulta" da indústria, já que faria o sucesso Guerra Civil de 2006 na Marvel Comics. Dois anos depois, Millar lançava a primeira parte da história do jovem Dave Lizewski em oito partes no mês de abril e pelo selo Icon, sediado pela própria Marvel. Com uma perspectiva mais realista, a obra foi aclamada pela sua capacidade de identificação com o leitor: Dave era um estudante do ensino médio que concretiza a ideia de se tornar um herói, mas as coisas saem completamente diferente das suas fantasias; em sua primeira missão, o personagem é duramente espancado, esfaqueado e atropelado. Mesmo com o trauma, na segunda vez que veste a roupa, ele se transforma em um viral, chamando a atenção de mafiosos pela cidade e de outros dois vigilantes: o impiedoso Big Daddy e sua filha de 12 anos, Hit-Girl.
Todavia, o que faz de Kick-Ass uma perspectiva tão sagaz sobre como seria se super-heróis fossem reais (sem super-poderes e bugigangas milionárias, mas pessoas comuns) é que Miller não busca necessariamente uma afinidade com o leitor, mas sim escarnecer as principais idealizações que circundam a mente de inúmeros fanáticos por quadrinhos. E o escritor começa ao não tratar seus personagens como exemplares idílicos de altruísmo, nem mesmo quando buscam fazer coisas boas. Dave não é um herói preocupado em ajudar o próximo, mas um nerd fracassado realizando uma fantasia de poder. Quando veste o uniforme e se vê ao espelho pela primeira vez, a constatação não é positiva. Não é necessário ter poderes para fazer aquilo, apenas uma "mistura de solidão e desespero", como bem afirma Lizewski. Seu protagonsista não é nada além de um adolescente entediado que se prende a essa fantasia (e a evidência disso é que, já na segunda edição, ele tem uma crise de consciência e desiste momentaneamente de concretizar essa insanidade, voltando a ela e indagando: "Deus, por que eu era tão retardado?")
A sátira deu certo, mas não da forma que Miller teria idealizado. E assim como ocorreu a Alan Moore no momento em que Zack Snyder escolheu desvirtuar a perspectiva desprezível que o escritor tinha dos seus personagens em Watchmen para tratá-los como bonecos de devoção quase religiosa, Matthew Vaughn reproduz o feito ao trazer Kick-Ass para o cinema, em 2010 (apenas um ano após o filme de Snyder). O olhar do diretor aqui, nasce de um terreno menos crítico ou ácido. Sua intenção é menos a ridicularização do que a estilização. E isso é notado em uma cena que existe tanto no material original quanto na adaptação: após ver o massacre que Hit-Girl faz, Dave chega em casa e sua narração reforça que, enquanto ele "brincava" de viver essa ilusão sem razão além do enfado corriqueiro da vida, Mindy e Damon realmente encarnavam aquilo para valer. A afirmação, que revela mais sobre a mediocridade do protagonista no quadrinho, no filme é uma confirmação gloriosa de que a dupla são "heróis de verdade".
Não existe espaço para uma leitura além da reafirmação de Vaughn que Hit-Girl e Big Daddy são heróis. Ou se existe, a maneira como isso é imposto ao olhar do espectador é condicionada ao oposto, uma vez que enxergamos esse universo pelos olhos de Dave e que a encenação do cineasta faz questão de carimbar o quão estilosos e descolados são Mindy e Damon. A cena do apartamento com uma trilha infantilizada (uma contradição satírica tão óbvia que se torna ridícula) e a invasão do Big Daddy ao galpão do Frank D'Amico são nada mais do que dispositivos para intuir o quanto devemos nos admirar por personagens que, em essência, são pensados como psicopatas (o uniforme de Damon, nos quadrinhos, remete menos ao Batman do que o Justiceiro, personagem que claramente foi a inspiração de Millar). O diretor sabe disso e, para tirar esse elemento do caminho, resolve suas sequências violentas de forma mais higienizada do que as vistas no quadrinho, onde era reforçado a natureza sanguinária da dupla.
Com isso, não quero afirmar que o filme de Vaughn deveria ser fiel ao quadrinho de Millar, mas evidenciar como a escolha ressoa uma natureza mais atenuada. Sim, ainda é um filme de resoluções brutais, mas a câmera ainda evita, corta com frequência e se opõe a mostrá-la em sua explicitez (e isso também não implica que ele deveria fazer o oposto, mas que a escolha prejudica aquilo que o filme é). Em outras palavras, tudo que Kick-Ass do Millar tem de irônico e desabrido ao fazer o recorte da comunidade fanática por quadrinhos de super-heróis, sua adaptação transforma em uma romantização. Dave continua um perdedor, mas Vaughn acha compreensível dar a ele uma namorada (que o mesmo enganou ao se fingir de homossexual), uma vida estável e um caráter altruísta ao afirmar que para ser herói basta ter um pouco de "otimismo e inocência". Vaughn não quer ridicularizar seu protagonista, mas abraçá-lo de todas as formas - e isso não seria um problema se o filme não adotasse o mesmo espírito satírico do quadrinho.
A teórica "sátira" de Vaughn sempre perde o caminho entre glorificação e escrotidão. Dave pode ser um babaca e ainda nos co-relacionarmos, mas quando o próprio filme o encarna como exemplar, isso se torna um desafio que Vaughn não consegue resolver. Nisso reside a frágil dramaturgia do cineasta, baseada na criação de arcos na qual ele não consegue administrar. Sua correria desenfreada não equilibra satisfatoriamente o sarcástico e escatológico com o emocional - a morte do Big Daddy, teoricamente um evento importante para Hit-Girl, é resolvido com desleixo pelo diretor - e o resultado é frustrante a medida que sua narrativa insere novos pontos dramáticos a serem explorados. O mesmo pode se afirmar da forma que Vaughn administra a ação por coreografias genéricas e um uso pífio do slow-motion, que só escancara a incapacidade de utilizá-lo como potencializador dos segmentos (o tiroteio final com a Mindy invadindo a casa do Frank é um dos menos expressivos do cinema hollywoodiano recente).
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